inserito in Diritto&Diritti nel febbraio 2004

Direito Comunitário : União Européia e Mercosul

E. M. Octaviano Martins[1]

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INTRODUÇÃO

                                A era da globalização da economia deu início a um mundo sem fronteiras. E nessa nova realidade mundial que  se afigura, decorrente do processo de  globalização da economia,  deparamo-nos com o surgimento do Direito Comunitário na União Européia.

                                Com a assinatura do Tratado de Assunção em 1991 a América do Sul dá o primeiro passo rumo à essa nova realidade, instituindo o Mercosul. Sabe-se que atualmente o Mercosul se encontra na Segunda fase do processo integracionista retratado numa União Aduaneira Imperfeita, tencionando porem a consolidação de um mercado Comum o que implicará adoção de um ordenamento jurídico comunitário, abandonando  o atual ordenamento jurídico internacional clássico.                  

 

I - DIREITO COMUNITARIO EUROPEU

 

1. Soberania e Supranacionalidade

                O Direito Comunitário pode ser definido como ramo de direito cujo objeto é o estudo dos tratados comunitários, a evolução jurídica resultante de sua regulamentação e a interpretação jurisprudencial das cláusulas estabelecidas nos referidos tratados.[2]

Depreende-se da história da formação da Comunidade Européia que uma dos maiores óbices para a efetivação da estrutura integracionista foi exatamente a aceitação do partilhamento da soberania entre os Estados-Partes.

A Comunidade Européia revolucionou o conceito de soberania, caracterizado pela unidade, indivisibilidade e inalienabilidade, superprotegido sob a égide da segurança nacional, instituindo o direito comunitário. Na U.E. todas as constituições permitem a delegação do exercício de competências para um poder supranacional, permissão mister para a primazia do direito comunitário sobre o nacional.[3]

                     Relativamente ao Mercosul, as constituições do Paraguai e Argentina admitem a ordem jurídica supranacional, ao contrário do Brasil e Uruguai. Referentemente ao Brasil, nosso  maior entrave é o art. 4 da CF/88. Em 1994 o então Dep. Nelson Jobim propos emenda constitucional que viabilizava a vigência imediata de diretivas e decisões tomadas por organismos internacionais, desde que nos tratados o Brasil tivesse firmado, e consequentemente fossem ratificados pelo Congresso, fosse prevista a hipótese de essas decisões serem tomadas por órgãos supranacionais. Dessa forma,  vigência seria imediata como um direito supranacional, independentemente do mecanismo tradicional de recepção, como atualmente acontece[4]. Essa proposta de emenda foi derrotada pelo Congresso na concepção do isolamento econômico brasileiro e no conceito ultrapassado de soberania.[5]

                Sob a ótica moderna do conceito de soberania, Nelson Jobim brilhantemente assevera  : “No momento em que a sociedade brasileira compreender que a soberania nacional é o direito de definir e aceitar a delimitação externa do próprio poder, e que essa decisão possa ser tomada soberanamente pelo país, caminharemos seguramente para o processo integracionista”.[6]

O grau de soberania num projeto integracionista é a pedra de toque do progresso integracionista.  Se a opção do Mercosul realmente é consolidar um mercado comum, isso fatalmente implicará em delegação de parte da soberania, para que um órgão possa ditar uniformemente as regras a serem cumpridas por todos, instaurando-se a supranacionalidade.[7]

 

2. Fontes do Direito Comunitário Europeu

O ordenamento jurídico comunitário vigente na União Européia  é composto pelo direito originário (fontes primárias) e pelo direito derivado (fontes secundárias), pela jurisprudencia e pelos princípios gerais de direito.

 

2.1. Direito Comunitário Originário – fontes primárias

As fontes primárias são retratadas por atos jurídicos que contém dispositivos totalmente  inovadores, desvinculados de qualquer fundamento existente anteriormente. Tal direito, é denominado de direito comunitário originário, em virtude de sobrevir diretamente dos acordos celebrados entre os Estados-Partes, constituindo o fundamento dos atos jurídicos anteriores advindos pelos órgãos da Comunidade. [8] O direito originário, basicamente se expressa nos Tratados europeus - tratados  que originam o fundamento constitutivo da ordem jurídica comunitária -  com seus respectivos anexos e protocolos.

2.2. Direito Comunitário Derivado – fontes secundárias              

 

O direito comunitário derivado consiste no conjunto de atos jurídicos adotados pelos órgãos da Comunidade que complementam e determinam os Tratados. Tais atos, provêm dos órgãos deliberativos e executivos  - Conselho e Comissão – e da Corte de Justiça, podendo assumir a forma de atos administrativos ou jurisdicionais.[9]

2.2.1. Atos unilaterais : Considerado a parte mais importante do Direito Comunitário Originário, os atos unilaterais encontram normatização no art. 189 do TCE :“ Para o desempenho das suas atribuições e nos termos do presente Tratado, o Parlamento Europeu em conjunto com o Conselho, o Conselho e a Comissão adotam regulamentos e diretivas, tomam decisões e formulam recomendações ou pareceres. O regulamento tem caráter geral. È obrigatorio em todos os seus elementos e diretamente aplicável em todos os Estados-Membros. A diretiva vincula o estado-Membro destinatário quanto ao resultado a alcançar, deixando, no entanto, as instancias nacionais a competência quanto a forma e aos meios. A decisão é obrigatória em todos os seus elementos para os destinatários que se designar .As recomendações e os pareceres não são vinculativos.”

2.2.1.1. Regulamentos : Do  caráter geral emanado do art. 189 do TCE, emana-se a interpretação de que corresponde à lei direito interno. [10]  Destarte, o Regulamento confere direitos e impõe obrigações de forma geral e abstrata. Constituem portanto a lei da Comunidade[11],  “declarações unilaterais efetuada no exercício da função normativa, produzindo efeitos gerais em forma direta”[12]. Desde a sua entrada em vigor, estes atos, impõem-se na  aos estados Membros, às suas autoridades e aos seus cidadãos.

2.2.1.2. Diretivas :  A diretiva vincula o Estado-membro destinatário quanto ao resultado a alcançar, deixando no entanto, às instâncias nacionais a competência quanto à forma e os meios (art. 189 do TCE). Configuram “expressões do poder hierárquico contendo instruções das instituições comunitárias endereçadas aos estados-membros”[13]

A diretiva possui efeito direto e não aplicabilidade direta, pois somente poderá ser invocada caso o Estado-membro não a transpuser para a normativa interna no prazo estipulado ou caso efetive a transposição, a faça de maneira incorreta. [14] . Tal distinção se dá, tendo em vista que o efeito direto não se encontra previsto nos tratados, ao contrário da aplicabilidade direta, mas foi uma criação da jurisprudência do TJCE, com apoio da doutrina. [15]

2.2.1.3 – Decisões: A decisão é obrigatória em todos os seus elementos para os destinatários que designar (art. 189 TCE). Caso a decisão se dirija a particulares – pessoas físicas ou jurídicas -  resultará diretamente direitos e obrigações a favor de seus destinatários, configurando portanto aplicabilidade direta na ordem interna. Constituirá  título executivo, nos moldes do art. 192 do TCE . No caso da decisão ser dirigida a um ou vários Estados-membros, desde que imponha obrigações precisas e incondicionais, poderá produzir efeito direto nas relações entre os Estados-membros e os particulares.[16]

2.2.1.4. Recomendações e os pareceres : As recomendações e os pareceres não são vinculativos “declarações unilaterais manifestadas de forma interna ou entre os órgãos comunitários. No exercício de funções administrativas, produzindo efeitos de forma indireta”[17].

2.3. Atos convencionais

Acordos celebrados entre os Estados Membros e os acordos concluídos entre a Comunidade e terceiros.

3. Jurisprudência

 Fonte formal e relevante  do direito comunitário, constituída pelo conjunto de decisões do Tribunal de Justiça das Comunidades Européias[18].

4. Princípios gerais de direito

Definidos como “regras jurídicas não escritas, comuns e aceitas pelos sistemas jurídicos, constituindo os suportes estruturais do sistema normativo”[19].

 

III – DIREITO COMUNITÁRIO DO MERCOSUL

 

Há que se distinguir a ordem jurídica comunitária da ordem jurídica internacional clássica. A ordem jurídica comunitária internacional  advém de tratados internacionais que ocasionaram subordinação do direito interno ao direito comunitário.  Há total primazia do direito comunitário sobre o direito interno, fruto de um processo de integração verdadeira, no qual os Estados-Partes tem sua soberania limitada e partilhada.

Distingue-se dessa forma a comunidade internacional clássica - na qual se enquadra o Mercosul - do modelo comunitário adotado pela União Européia. Na comunidade internacional clássica, formada por estados soberanos, inexistem normas comunitárias e supranacionalidade. Predomina uma relação horizontal [20]de soberanias e um sistema de cooperação entre os Estados.

No modelo comunitário, a relação se assenta em bases verticais,  no qual os Estados partilham sua soberania que assegura o processo de  integração, a ordem jurídica comunitária e o poder supranacional. O direito comunitário nasce desce modelo, vinculando os Estados-Partes, as pessoas físicas e jurídicas no âmbito de cada Estado.

A União Européia inovou o cenário jurídico internacional ao abandonar o arcaico conceito de soberania. Instituiu o direito comunitário decorrente de uma soberania partilhada que estabeleceu um quadro jurídico único, constituído de normas que ultrapassam o direito nacional configurando total primazia do direito comunitário sobre o nacional.  A aplicação de tais normais passam a estar sujeitas ao Tribunal de Justiça, que está acima dos Estados Membros, assegurando uniformidade de aplicação e implementação. O direito comunitário nasce nesse modelo  vinculando os Estados-Membros e as pessoas físicas ou jurídicas diretamente no âmbito interno de cada Estado como consequencia da primazia do direito comunitário.[21]

                É aqui portanto que se aponta  a grande diferença do Mercosul e da União Européia.Diferentemente da União Européia, a mecânica de incorporação do direito do Mercosul aos direitos nacionais, foi e continua sendo a mecânica clássica. O direito do Mercosul se assenta no modelo clássico, i.e., advém de Tratados Internacionais negociados pelos governos e que posteriormente aprovados pelos Congressos são ratificados pelos Estados-Membros e promulgados, incorporando-se assim  a norma do Mercosul ao direito nacional de cada um dos seus integrantes. Trata-se do típico e clássico fenômeno da recepção. [22]

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

Não há que se falar portanto de Direito Comunitário do Mercosul, pois o verdadeiro direito comunitário prescinde do mecanismo tradicional de incorporação. A pedra de toque do Direito Comunitário é a primazia instaurada do Direito Comunitário sobre o nacional de maneira direta, desvinculada portanto do mecanismo clássico da recepção. O Direito Comunitário existente na União Européia é incorporado de forma congênita aos direitos nacionais. Destarte, inexiste no Mercosul  o verdadeiro direito comunitário, o que reina de forma absoluta é o  direito internacional público, regional, integracionista, vinculado ao fenômeno de recepção.[23]

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

ALMEIDA, Elizabeth Accioly Pinto de. Mercosul & União Européia – Estrutura Jurídico- Institucional. Curitiba : Juruá Editora, 1996.

BAPTISTA, Luiz Olavo; MERCADANTE, Araminta de Azevedo e CASELLA, Paulo Borba. Mercosul – Das Negociações à implantação. São Paulo : Ed. Ltr, 1994.

FORTE, Umberto. União Européia . Comunidade Econômica Européia. (Direito das Comunidades Européias e harmonização fiscal). São Paulo : Malheiros, 1994.

LUPATELLI Jr. , Alfredo e MARTINS, Eliane Maria Octaviano In Mercosul – O Direito Empresarial e os Efeitos Da Globalização, Revista de Direito do Mercosul, edição VI, ano II, Buenos Aires : Ed. La Ley, 1998.

LOBO, Maria Teresa Cárcomo. Ordenamento Jurídico Comunitário. Belo Horizonte : Del Rey, 1997.

MARTINS, Eliane Maria Octaviano . Direito da Concorrência e Mercosul. Boletim IOB de Jurisprudência, junho 96.

SOARES, Mário Lúcio Quintão. Direitos Humanos, Globalização e Soberania.  Belo Horizonte : Inédita, 1997. 

SOUZA, Carlos Aurélio Mota. Segurança Jurídica e Jurisprudência – Um enfoque filosófico-jurídico . São Paulo : Ltr, 1996.

Note:

[1] Eliane Maria Octaviano Martins é sócia de OCTAVIANO MARTINS ADVOGADOS ASSOCIADOS (www.octavianomartinsadvogados.com.br) Vice-Presidente do Instituto Paulista de Direito Comercial e da Integração - IPDCI, Coordenadora Jurídica da Revista de Direito Internacional e Mercosul (Ed. La Ley, Buenos Aires); Professora Titular  de Direito Comercial e de Direito Marítimo da UNISANTA  e UNIMONTE em cursos de graduação e pós-graduação;; Web master do Portal Santa jus (www.santajus.unisanta.br), autora de diversos livros e artigos no Brasil e Exterior. Pósgraduação em Direito Privado; Mestrado em Direito Empresarial (UNESP) e Doutoranda em Direito Econômico Internacional (USP).

[2] Cf. LOBO, Maria Teresa Cárcomo.  Ordenamento Jurídico Comunitário. Belo Horizonte : Del Rey, 1997.

 

[3] Vide LOBO, Maria Teresa Cárcomo, op. cit. e SOARES, Mário Lúcio Quintão. Direitos Humanos, Globalização e Soberania.  Belo Horizonte : Inédita, 1997. 

[4] Cf. JOBIM,  Nelson in VENTURA, Deisy (org.).,  Direito Comunitário do Mercosul. Porto Alegre : Livraria do Advogado, 1997.

[5] idem

[6] Cf. JOBIM,  Nelson in VENTURA, Deisy (org.).,  op. cit.

[7] Cf. ALMEIDA, Elizabeth Accioly Pinto de. Mercosul & União Européia – Estrutura Jurídico- Institucional. Curitiba : Juruá Editora, 1996.

[8] Cf. FORTE, Umberto. União Européia . Comunidade Econômica Européia. (Direito das Comunidades Européias e harmonização fiscal). São Paulo : Malheiros, 1994,  p. 31.

[9] FORTE, Umberto, op. cit, p.31.

[10] Idem.

[11] Vide ACCIOLY, Elizabeth, op. cit., p. 93.

[12] Cf. SOARES, Mário Lúcio Quintão, op.cit. p. 44.

[13] Cf. SOARES, Mário Lúcio Quintão, op.cit. p. 44.

[14] Vide ACCIOLY, Elizabeth, op. cit. p. 94.

[15] FAUSTO DE QUADROS, in Direito das Comunidades Européias e Direito Internacional Público, Lisboa : Almedina, 1991, pp. 420-421 apud ACCIOLY, Elizabeth, op. cit. p. 95.

[16] Vide ACCIOLY, Elizabeth, op. cit. p. 96.

[17] Idem.

[18] Cf. SOARES, Mário L. Quintão, op. cit. e LOBO, Maria Teresa Cárcomo, op. cit.

[19] DROMI, Ekmekdjian e RIVERA apud SOARES, Mário Lúcio Quintão, op. cit. p. 44.

[20]  Vide ACCYOLI, Elizabeth, op. cit.

[21] Idem.

[22] Vide LUPATELLI Jr. , Alfredo e MARTINS, Eliane Maria Octaviano In Mercosul – O Direito Empresarial e os Efeitos Da Globalização, Revista de Direito do Mercosul, edição VI, ano II, Buenos Aires : Ed. La Ley, 1998. 

 

[23] Cf. Jobim, op. cit.