O estado de paz

More Rodrigo 28/06/07
O estado de paz[1]
 
1. O Estado
 
            O Estado está em constante crise de objetivos. A afirmação não é originalmente nossa, nem reflete novidade na literatura da Ciência Política ou do Direito especializadas nos estudos das funções e papéis do Estado. Num contexto realista, poder-se-ia arriscar dizer que o Estado está em constante transformação histórica, política e jurídica, orientado por estratégias que são determinadas tanto por objetivos de projeção interna, quanto além-fronteiras. Neste estudo, dizer-se que o Estado está em crise, significa dizer que está em constante transformação para atendimento de seus objetivos[2].
            O Estado é o centro das relações internacionais. Apesar das “novas” ameaças, chamadas de “new issues” pela doutrina e nos fóruns internacionais, caracterizadas pela ameaça à paz e segurança internacionais por atores não-estatais, nomeadamente o terrorismo[3], o Estado está no centro não somente das questões de segurança, como também daquelas relativas à “cooperação para solução dos problemas internacionais de caráter econômico, social, cultural ou humanitário, e para promover e estimular o respeito aos direitos humanos e às liberdades fundamentais[4]. Além disso, o Estado é o principal ator das relações internacionais e sujeito de Direito Internacional, o principal promotor e, ao mesmo tempo, violador de direitos humanos e das liberdades fundamentais, além de ser o principal ator das relações econômicas em sentido amplo. Em suma, cabe ao Estado a elaboração e implementação de macro-políticas internas e externas, além do estabelecimento da moldura jurídica que deve nortear os indivíduos, e o próprio Estado, na realização de seus objetivos.
            Os objetivos do Estado são determinados pelas demandas internas e pela projeção destas na esfera internacional, numa relação sistêmica[5]. No plano interno, o desenvolvimento econômico sustentável, baseado na inserção dos atores micro-econômicos no comércio internacional, na distribuição de riquezas, no respeito aos direitos humanos e na proteção ao meio ambiente, alia-se às questões de segurança pública (a chamada “violência”), de emprego, saúde e educação, apenas para citar os principais pontos de apoio, e ao mesmo tempo de desafio, da estrutura política interna.
As políticas públicas internas apóiam-se numa estrutura jurídica, cujo conjunto forma um sistema de prevenção, administração e coação. A capacidade e efetividade do Governo em gerenciar todas essas questões e demandas determinam a força interna do Estado, ou nas palavras de Kalevi Holsti, se um Estado é forte ou fraco[6].
            Um Estado de promoção da paz deve ser um Estado forte, não necessariamente um Estado poderoso, ou uma potência. A alteração da natureza da grande maioria dos conflitos armados – de conflitos interestatais para conflitos intra-estatais – considerados pelo Conselho de Segurança como ameaças ou de efetivo rompimento da paz e da segurança internacionais, expõem a fraqueza da estrutura política e jurídica interna de alguns Estados, como foi o caso da Bósnia-Herzegovina (1993), Ruanda (1994), Serra Leoa (1997) e Kosovo (1999), apenas para citar alguns exemplos mais recentes enfrentados pelo Conselho. Noutra vertente, da projeção internacional das demandas internas, a capacidade do Estado em conseguir e defender objetivos externamente, seja através da dissuasão ou da coerção, é tradicionalmente medida em termos de quantidade de “poder” (power), um conceito que historicamente se vincula ao fenômeno da guerra, ao poderio militar[7]. Assim, para este estudo, o “poder” de um Estado será medido pela capacidade de realização e defesa externa de seus objetivos, não apenas em sua vertente militar.
            Como a guerra, ou o uso da força armada para solução de controvérsias, é juridicamente proibida, senão como exercício da legítima defesa individual ou coletiva conforme previsto na Carta da ONU, e há longo tempo não se manifesta apenas na versão interestatal para produzir reflexos internacionais, o poder de um Estado não pode ser medido apenas em termos militares, mas deve considerar a capacidade de realização de objetivos além-fronteiras por meios outros que não a guerra, como a capacidade de negociar por meios diplomáticos, inclusive exercendo o poder econômico. A título ilustrativo desta posição, o Japão é reconhecidamente uma potência econômica, muito embora não seja uma potência militar.
            Assim, quando se trata da realização interna de objetivos, numa perspectiva verticalizada, fala-se em força, em Estado forte ou Estado fraco, como sugeriu Holsti; ao se cuidar da capacidade de realização externa de objetivos, numa perspectiva horizontalizada, fala-se em Estado-potência, ponto ao redor do qual foi construído todo o sistema de Estados. Há entre os Estados-potências e os demais Estados, sejam fortes ou fracos, uma relação de equilíbrio.
 
2. Equilíbrio de poder entre Estados
 
            O equilíbrio de poder, aqui compreendido como um concerto entre Estados-potências, pode ser analisado sob diferentes perspectivas a partir da natureza das relações entre Estados em sentido amplo.
            Politicamente, depois do fim da Guerra Fria, tornou-se no mínimo estranho falar-se em equilíbrio de poder num mundo unipolarizado[8] nos EUA, cuja política externa unilateralista desafia o multilateralismo[9]. Sob o ponto de vista jurídico, o equilíbrio de poder é um fato inócuo, já que a soberania torna todos os Estados juridicamente iguais, eqüipotentes. Assim, se subsistem resquícios de equilíbrio de poder nos dias atuais, como um equilíbrio entre Estados-potências à semelhança daquele bipolar entre URSS e EUA na Guerra Fria, estes resquícios estão ligados à vertente técnico-militar (equilíbrio de poder militar) da política de defesa dos Estados e à existência de uma uni-multipolarização em torno destes mesmos temas.
            A uni-multipolarização é um fenômeno político provocado pela existência de uma potência combinada pela reunião de múltiplos pólos de atração de alianças num universo de uma única potência, os EUA, para formar alianças em matéria de segurança. A multiplicidade de pólos de atração, no total de três, é integrada pelos membros permanente do Conselho de Segurança assim polarizados em questões de segurança: a tríade EUA-França-Reino Unido (OTAN), a Rússia e a China. Ora, não é coincidência o fato do tema do desarmamento nuclear ser orientado por estes mesmos cinco Estados-nucleares, fundadores do TNP (1968) e os únicos, segundo o regime do TNP[10], a deter permanente e exclusivamente essa condição. Para justificar esta nossa posição, exploraremos sucintamente a questão do desarmamento nuclear, pois é o único tipo de ADM cuja ameaça ou emprego não é expressamente proibida pelo Direito Internacional[11].
            Esta condição privilegiada das armas nucleares no campo político-militar baseia-se num frágil instrumento jurídico de equilíbrio de poder nuclear que ainda convive com a paz de impotência[12], um conceito desvendado por Raymond Aron que não mais se caracteriza pelo “equilíbrio do terror”, ou temor da aniquilação mútua, mas pelo que entendemos chamar de um “desequilíbrio do terror” causado pela imprevisibilidade e risco causados seja por atores estatais, como daqueles que se negam a aderir ao regime do TNP (1968) como a Índia, Paquistão e Israel, seja em razão do risco de rompimento com a obrigação do uso pacífico da energia nuclear, como é o caso da Coréia do Norte, que denunciou o TNP em 2003, e do Irã, aos quais a Doutrina Bush denomina “Rogue States” (Estados rebeldes), seja em razão da duvidosa garantia de segurança do chamado “guarda-chuva de proteção” do TNP (1968), que jamais foi testada ou, ainda, seja em razão das ameaças dos atores não-estatais, como o terrorismo, que hipoteticamente seria apoiado, omissiva ou comissivamente, por aqueles Estados rebeldes[13].
            Apenas para testar algumas destas hipóteses, como o guarda-chuva do TNP (1968) e sua relação com os Estados rebeldes e o terrorismo, consideremos que, diante de um ataque nuclear, estatal ou terrorista, os Estados do TNP (1968) encontrar-se-iam diante de um dilema sem solução: responder ou não a um ataque na mesma proporção, ou seja, com armas nucleares. O primeiro entrave jurídico seria proporcionalidade da resposta (da retorsão), já que armas nucleares, assim como as armas químicas e biológicas, não distinguem entre terroristas e civis. O segundo, seria a identificação dos responsáveis, nomeadamente governos, não Estados, em conexão ou não com terroristas, como foi o caso do governo Talebã no Afeganistão em relação aos terroristas da Al-Qaeda: como punir o Governo sem punir o Estado?
            Assim, se o dilema do TNP (1968) não teria solução, como um tratado formal e juridicamente vinculante deveria ser considerado preponderantemente em sua vertente política, ou seja, como um “guarda-chuva de dissuasão”, cuja efetividade não pode ser medida em termos de garantias efetivas (garantias de execução), já que garantia eficaz alguma pode emergir de um sistema de equilíbrio que não mais se baseia apenas nem relações entre Estados-potências, mas na concorrência de outros Estados rebeldes e, principalmente, de atores não-estatais, como os terroristas, por uma parcela tecnicamente ilimitada de poder, no caso de poder militar, outrora privilégio de poucos Estados. No campo militar, Irã e Coréia do Norte disputam lugar entre os Estados-potências na vertente militar, já que comparativamente à esfera econômica é muito mais fácil tornar-se uma potência produzindo bombas nucleares, ainda mais se já se tem tecnologia para isso[14].
            Essas observações sob a vertente jurídica e política do TNP (1968), e de seu equilíbrio de poder na esfera nuclear, permitem concluir que se trata um instrumento de Direito Internacional de conteúdo contraditório, já que se funda numa ausência de equilíbrio de poder militar pela renúncia às armas nucleares e, ao mesmo tempo, na manutenção de um pólo de múltiplas potências (uni-multipolarização) que permite possa deter tais armas, como um guarda-chuva protetor que deve ser eficaz, até mesmo usá-las. A se manter o desafio ao regime pela Índia, Paquistão, Israel e pela Coréia do Norte e do Irã no impasse com a AIEA (Agência Internacional de Energia Atômica) sobre as inspeções de suas instalações nucleares, já que a AIEA é o órgão de controle sobre o uso pacífico da energia nuclear, tem-se em xeque a validade e o equilíbrio de poder uni-multipolar (militar nuclear) estabelecido pelo TNP (1968). E não é só.
            No campo do desarmamento, especialmente em relação às ADM, conforme poderemos analisar mais adiante neste estudo, arrasta-se a implementação efetiva de técnicas de controle de armas, mais por entraves dos Estados-potências que dos demais Estados, como se pode concluir da paralisação, desde 1996, na agenda de negociação da Conferência sobre Desarmamento, o mais importante fórum de negociação multilateral sobre desarmamento, não apenas sobre ADM, mas também sobre certas armas convencionais. Essa paralisação produz conseqüências negativas de toda ordem no processo de negociação e construção da paz pelo desarmamento dos Estados, conseqüências que se explicam no chamado “dilema da segurança”.
            O dilema da segurança influencia a percepção e opção do Estado pela conveniência e segurança do desarmamento. Se o Estado se desarma em nome de uma segurança internacional coletiva, este sistema deve ser eficaz na defesa do território dos Estados-partes e garantir o permanente desarmamento dos demais Estados. Se falha um destes elementos, ou se não há confiança suficiente entre os Estados para a promoção do desarmamento, o resultado é a corrida armamentista. Daí se dizer, como se fará mais adiante neste estudo, que um dos pilares do desarmamento é o processo de construção de confiança, que se consolida por atos unilaterais dos Estados e, num plano mais amplo, por tratados específicos, juridicamente vinculantes ou não, formando um conjunto de iniciativas jurídicas e políticas que conduzem ao desejado desarmamento e ao equilíbrio.
            No campo do desarmamento, na verdade, falta uma fórmula de equilíbrio de poder militar, pois a fórmula existente é produto de uma divisão por “zero”, ou seja, um arranjo impossível por definição: os Estados-potências não abrem mão nem de armas nucleares nem de algumas armas convencionais, como minas terrestres antitanque ou armas de alta tecnologia (“inteligentes”), por exemplo, nem permitem sejam feitas inspeções in situ sobre suas instalações no caso de armas já proibidas, como as armas químicas e biológicas.
            A imensa maioria dos Estados vive num equilíbrio de paz internacional, equilíbrio que é rompido, ou ameaçado, por um reduzido número de Estados num confronto sem fim com as grandes potências, não num embate direto, mas numa perspectiva de risco e ameaça.
            Para se sair de um equilíbrio militar de resultado impossível, uma nova fórmula deve se pautar por uma revisão do equilíbrio de poder militar que não mais se restrinja aos Estados-potências, mas seja ampliada a todos os Estados, inclusive e especialmente aos Estados fracos, onde conflitos internos ameaçam não somente a integridade da nação como um todo, mas podem produzir também instabilidade no sistema internacional, fomentando o crime organizado transnacional em torno do tráfico de armas e de entorpecentes, por exemplo, situações cujo combate exigem, inexoravelmente, a participação da sociedade civil local para construção de um Estado de paz, de um Estado que busque a paz.
 
3. O Estado em busca da paz
 
A busca da paz é uma constante da Humanidade. Desde as relações pessoais às relações de Estado, a paz, compreendida em sua forma mais simples com a ausência de conflitos, é o ponto para o qual convergem todas as aspirações da Humanidade. Como as relações interpessoais, entre Estados e pessoas, e as interestatais se tornam a cada dia mais complexas, especialmente no campo do Direito, definir-se o conteúdo da paz tornou-se tarefa das mais árduas. O mesmo se pode dizer da definição de um Estado de paz.
Em 2002, em dissertação de mestrado deste autor à Faculdade de Direito da USP – “Fundamentos das Operações de Paz da ONU e a Questão de Timor Leste” – procurou-se investigar as diversas acepções da paz para poder compreender o escopo das operações de paz da ONU. Naquele estudo, compreender os diversos significados da paz era necessário para identificar que tipo de paz era almejado em operações formais da ONU que evoluíram de iniciativas de peacekeeping (manutenção da paz) para iniciativas de peace-building (construção da paz). Neste estudo nos foi apresentada uma oportunidade de avançar um pouco mais naquelas reflexões, não somente em relação às operações de paz, mas na busca de uma definição para a “situação de paz” que caracteriza um Estado de paz.
Naquele estudo, definimos a paz sob a perspectiva estrutural global como “um valor positivo, reconhecido, sim, como um bem insuficiente, mas fundamental para a realização dos propósitos do desenvolvimento econômico sustentável, do progresso social, da justiça, da igualdade entre os homens, da assistência recíproca entre os Povos, da igualdade soberana entre Estados”. Por outro lado, a paz também pode ser definida como: a) paz interna em contraposição à paz externa; b) paz como antítese da guerra; c) a paz como um valor e como um ideal perpétuo; d) a paz como meio ou; e) como preferem Raymond Aron e Norberto Bobbio, como paz de potência, de impotência ou de satisfação. Vejam-se a seguir algumas de suas características.
A Paz interna é a paz de foro íntimo do indivíduo; a paz externa, de interação entre os indivíduos e os grupos dos quais faz parte, sua comunidade[15]. Essas a paz que denominaremos mais adiante como paz percebida individualmente ou entre indivíduos, que não afetam diretamente o conceito de paz na perspectiva do Estado, que é uma paz estrutural.
A paz como antítese da guerra carreia ao conceito de paz um conteúdo negativo e uma imprecisão conceitual, pois há entre a guerra e a paz absolutas estágios intermediários de mais guerra e menos paz, ou vice versa, como os armistícios e os acordos de cessar-fogo.
Além disso, pode-se utilizar a força armada como modo de imposição da paz, que se denomina modernamente, no âmbito das operações de paz da ONU, de “peace enforcement”. Essa formulação da paz encerra uma interpretação realista, hobbesiana, “de que a paz não é um estado natural entre os homens em sociedade, mas, sim, os conflitos de interesses que degringolam para a violência pessoal ou para a estrutural[16]. Existe, então uma paz negativa, caracterizada pela a ausência de violência pessoal, e uma paz positiva, pela a ausência de violência estrutural ou institucional, que causa as desigualdades, a exclusão social e econômica dos Estados[17], uma perspectiva que se aproxima muito da perspectiva do Estado e que influencia sobremaneira o conteúdo da paz internacional.
Como um valor, a paz pode ser um valor positivo, um conjunto de coisas boas, e sua ausência, como um conjunto de coisas ruins. “Isso é facilmente perceptível, por exemplo, no Preâmbulo da Carta da ONU, no qual se relaciona a guerra a um sofrimento indizível para a humanidade, contraposto à paz e segurança internacionais como elementos de garantia dos direitos fundamentais do homem, para preservação de sua dignidade e valor, enfim, a paz é pressuposto para a realização do progresso social e implementação de melhores condições de vida a todos[18].
Como um ideal perpétuo, sob um ponto de vista analítico denominado de “idealista” na Teoria das Relações Internacionais, a paz entre Estados é aquela defendida por Kant (1724-1804) em seu “Projeto da Paz Pérpétua” e, antes dele, pelo abade de Saint-Pierre (1658-1743) no “Projeto para uma Paz Perpétua para a Europa”[19].
No “Projeto da Paz Perpétua” de Kant, por exemplo, “os exércitos permanentes (miles perpetuus) devem, com o tempo, desaparecer totalmente”, pois são instrumentos de ameaça constante entre Estados, pois “a paz, em virtude dos custos relacionados com o armamento, se torna finalmente mais opressiva do que uma guerra curta. [20]
A obra de Kant serviu de inspiração para o desenvolvimento o Direito Humanitário Internacional, pois considerava que a guerra não poderia “se harmonizar bem com o direito da humanidade e da própria pessoa[21]. Também condenava Kant a guerra ofensiva, aquela que não se pautava pela defesa da própria ou da Pátria. Em relação à paz entre Estados, Kant inicia sua análise afirmando que:
O estado de paz entre os homens que vivem juntos não é um estado de natureza (status naturalis), o qual é antes um estado de guerra, isto é, um estado em que, embora não exista sempre uma explosão das hostilidades, há sempre, no entanto, uma ameaça constante. Deve-se, portanto, instaurar-se um estado de paz; pois a omissão de hostilidades não é ainda uma garantia de paz e se um vizinho não proporciona segurança a outro (o que só pode acontecer num estado legal), cada um pode considerar como inimigo a quem lhe exigiu tal segurança[22].
Neste sentido, o primeiro artigo definitivo proposto por Kant para uma Paz Perpétua elege a forma republicana de governo para os Estados, mas não necessariamente pela democracia (poder do povo), uma das formas de soberania identificadas por Kant além da autocracia (poder do príncipe) e da aristocracia (poder da nobreza). O segundo artigo defende que “o direto das gentes deve fundar-se numa federação de Estados”. Kant faz distinção entre uma federação da paz (foedus pacificum) do pacto de paz (pactum pacis), pois reconhecia que um tratado de paz põe fim a uma guerra, mas não ao estado de guerra[23]. A federação de Estados de Kant serviu de inspiração a Woodrow Wilson e seus “Catorze Pontos”, sendo o último deles alusivo à criação de uma “associação de nações”[24], que viria a ser a Sociedade das Nações (SDN) foi assim concebida:
Os Estados com relações recíprocas entre si não têm, segundo a razão, outro remédio para sair da situação sem leis, que encerra simplesmente a guerra, senão o de consentir leis públicas coativas, do mesmo modo que os homens singulares entregam sua liberdade selvagem (sem leis), e formar um Estado de povos (civitas gentium), que (sempre, é claro, em aumento) englobaria por fim todos os povos da terra. Mas se de acordo com a sua idéia do direito das gentes, isto não quiserem, por conseguinte, se rejeitarem in hipothesi o que é correto in thesi, então, torrente da propensão para a injustiça e a inimizade só poderá será detida, não pela idéia positiva de uma república mundial (se é que tudo não se deve perder), mas pelo sucedâneo negativo de uma federação antagônica à guerra, permanente e em contínua expansão, embora como o perigo constante de sua irrupção.[25]
                        A paz como meio, na visão de Norberto Bobbio que se afasta do modelo hobbesiano de paz e guerra como bem e mal absolutos, considera a paz como um bem insuficiente e a guerra como um mal necessário[26]. Como um bem insuficiente, a paz não é suficiente, por si só, para garantir as condições de sobrevivência, mas não deixa de ser um valor prévio para a realização de outros valores[27]. Por outro lado, a guerra é um mal necessário que historicamente conduz ao progresso social, econômico e tecnológico da humanidade, inclusive à própria transformação do Estado. Se considerarmos que a Carta da ONU não proíbe absolutamente a guerra, mas a permite em situações de legítima defesa própria ou coletiva, nem a paz nem uma situação de paz podem ser entendidos como valores absolutos.
                        Finalmente, segundo Raymond Aron, também citado por Bobbio, há três tipos de paz: de potência, de impotência e de satisfação. A paz de potência subdivide-se em: “a) equilíbrio; b) hegemonia; c) império, conforme os grupos políticos esteja em relação de igualdade, ou desigualdade baseada na preponderância de um sobre os outros (como acontece no caso dos Estados Unidos em relação aos outros Estados da América), ou então baseada num verdadeiro e autêntico domínio, exercido pela força, como a chamada pax romana.”[28]. A paz da impotência é caracterizada pelo “equilíbrio do terror” e medo de aniquilação mútua, características da Guerra Fria e, finalmente, a paz de satisfação ocorre entre Estados sem interesses conflitantes uns em relação aos outros, independentemente da existência ou não de relações jurídicas ou políticas entre eles.
Como se percebe de todas estas definições, a paz não pode ser simplesmente definida como ausência de guerra, da mesma forma que a situação de paz entre Estados, ou mesmo um Estado de paz em si, não pode ser, neste estudo, simplesmente definido como a oposição à situação de guerra entre Estados, ou ao Estado de guerra. Há muitos matizes relevantes a serem considerados, inclusive na própria determinação do que seja a paz, pois a paz não pode ser reduzida apenas ao que é verificável no mundo material[29].
Esta nossa insatisfação em relação à definição do que seja uma “situação de paz” (ou da própria “paz”) encontra algum conforto na doutrina de Norberto Bobbio, em sua Teoria da Política, muito embora o autor proponha, de início, definir situação de paz (estado de paz) como derivado negativo do estado de guerra[30]. Mais adiante na Teoria Política, Norberto Bobbio propõe uma definição positiva da paz “como aquela que pode ser instaurada somente através de uma radical mudança social e que, pelo menos, deve avançar lado a lado com a promoção da justiça social, com o desenvolvimento político e econômico dos países subdesenvolvidos, com a eliminação das desigualdades[31]. A paz deve ser, e a situação de paz no Estado deve refletir, a realização destes propósitos.
Muitas são as questões que acabam por influenciar a realização e a manutenção de uma situação de paz e da paz internacional: a própria guerra ou conflitos armados, o subdesenvolvimento, a pobreza, a miséria, a violência, as questões ambientais e de desenvolvimento sustentável, o crime organizado transnacional, a exclusão econômica e comercial, a intolerância cultural, religiosa e étnica, a própria democracia e sua ausência, o desrespeito ao Direito Internacional, o terrorismo internacional, a corrida armamentista, apenas para citar alguns exemplos.
Como um fenômeno jurídico, a paz internacional é a paz protegida pelo Capítulo VII da Carta da ONU, pois é o Conselho de Segurança que juridicamente define o conteúdo e a extensão política e jurídica da paz. Em decorrência disto, pode-se dizer que um Estado de paz é aquele que respeita a paz da Carta.
Contudo, a ligação estreita entre Direito e Política, muito mais evidente nas Relações Internacionais, faz das categorias jurídicas de Direito Internacional, sob um ponto de vista realista, um grande vazio jurídico que se completa por elementos da política e das relações de poder, quando, sob um ponto de vista idealista, aquelas questões (e a determinação da paz) não deveriam estar sujeitas a considerações e variações de conteúdos políticos, mas deveriam ser vistas como fatos puros, ou seja, vive-se ou não numa situação de paz. Numa terceira perspectiva, essencialmente racionalista, a situação de paz é uma situação de convivência necessária e da diplomacia do possível entre Estados, talvez a que mais se aproxime, no contexto deste estudo, das questões do desarmamento[32].
Estas três perspectivas nos levam a refletir que, se considerássemos a situação de paz como um fenômeno e fato puros da filosofia, deveríamos renunciar a uma série de elementos, de diversas naturezas, que influenciam na formação, orientação e percepção de uma situação de paz, como os fatos políticos, jurídicos, sociais, econômicos, culturais e as relações desiguais de poder entre Estados. Teríamos de considerar os fatos numa perspectiva ideal, não real.
Conclui-se, então, que uma ordem legal não importa, necessariamente, numa ordem nem de paz empírica nem teórica sob a perspectiva dos indivíduos. A construção e manutenção de uma situação de paz é função do Estado.
 
4. As funções e os atores do Estado de paz
 
            Uma das funções do Estado é o provimento de segurança aos seus nacionais, de segurança pública e de integridade territorial ou política. A defesa deste patrimônio é, se conduzida ao extremo, exercida pela guerra ou conflitos interestatais.
Se associarmos o Estado às liberdades dos indivíduos e essas à ordem legal, impondo limites para a ação do Estado em relação aos indivíduos, podemos considerar que as funções do Estado de paz podem ser consideradas em três perspectivas de dois atores distintos, o Estado e o indivíduo, quais sejam: a) entre indivíduos (isoladamente); b) entre indivíduos e o Estado (sociedade e obrigações em relação ao Estado e vice versa) e; c) entre Estados (relações internacionais).
Sob o ponto de vista jurídico sob o qual se funda este estudo, estas perspectivas operam em três sistemas distintos – o sistema de Direito interno, o sistema de Direito Internacional e o sistema das Nações Unidas, como veremos mais adiante no Capítulo IV. Definidos como parte de sistemas de Direito, os esforços de paz não comportam percepções individuais, mas apenas percepções coletivas, expressas em leis que formam o corpo jurídico do Estado e cuja perspectiva da paz é estrutural ou institucional[33], na qual uma situação de paz se estabelece numa situação de não-violência do Estado em relação aos indivíduos, cuja aferição, especialmente sob o ponto de vista internacional, é politicamente indeterminável.
Na perspectiva dos indivíduos, a paz é egoística mesmo dentro de uma ordem legal. Para os indivíduos uma situação de paz é uma situação de coisas boas, um valor positivo não necessariamente em conformidade com a ordem legal, mas satisfatório aos seus interesses imediatos e mediatos. O exercício destes interesses, contudo, deve ser ordenado na vida em sociedade para que uma situação de paz, mesmo egoísta, se preserve como expressão de um valor coletivo. Quando esta paz egoísta se distancia dos valores comuns, rompe-se a paz entre os indivíduos, demandando-se uma resposta da ordem legal, do Estado, para seu restabelecimento. Assim, na perspectiva do indivíduo que tem violado seus direitos, uma vez ocorrida a violação, não se reconstitui a paz a partir de uma situação de coisas boas e isso pode refletir na sua vida em sociedade e sobre a própria ordem legal, exigindo a intervenção estatal que é sempre objetada como uma coisa ruim. Essa perspectiva individual está intrinsecamente vinculada à percepção individual de Justiça, que no extremo é exercida e mantida coercitivamente pelo Estado.
Por outro lado, se a paz é egoística para os indivíduos isoladamente, em sociedade ela não é a regra, mas a exceção. A despeito da ordem legal, prevalecem nas relações em sociedade um estado natural e hobbesiano de conflitos constantes por bens escassos sobre uma paz que se deve construir, então, em concurso coletivo.
Na vida em sociedade, a guerra e a paz, e suas situações de realização, não costumam ser julgadas como valores finais, intrínsecos, mas como valores instrumentais ou extrínsecos, pois se fundam no princípio de que os fins justificam os meios, “é com base em tal juízo que nem sempre a guerra é condenada, nem sempre a paz é exaltada: a condenação ou exaltação dependem de um juízo de valor positivo ou negativo[34]. A definição de uma situação de guerra e de paz depende, assim, “de um juízo político, positivo ou negativo, daqueles que detém o poder, ou seja, daqueles que administram os dois opostos[35].
            Isso nos conduz à análise da paz sob a perspectiva das relações entre os indivíduos e o Estado. Nesta perspectiva, o Estado de paz é construído pela percepção governamental, estrutural, que detém o controle da ordem pública e o poder de determinar, através de um juízo político e jurídico negativo ou positivo, a qualidade da paz que deseja.
            A qualidade da paz é determinada pela capacidade do Estado e do Governo em perceber e responder às demandas da coletividade[36], em promover uma paz sustentável[37].
            Na esfera interna, embora a percepção do Estado seja estrutural, os indivíduos não relacionam a paz diretamente ao Estado como instituição, mas ao Governo enquanto poder, atribuindo a ele o sucesso ou fracasso, entendidos como bônus e ônus do exercício de sua função, na administração de questões mais emergentes de segurança pública, saúde, emprego, alimentação e justiça, por exemplo. Na esfera interna, o Estado de paz confunde-se com o Governo de paz, o que nem sempre condiz com a percepção dos demais Estados e Governos na esfera internacional. A título exemplificativo, o Governo da Rússia em face dos ataques terroristas por separatistas chechenos, acenou com medidas restritivas das liberdades individuais que aproximam cada vez mais o Governo russo do exercício de um regime político autoritário. Numa perspectiva interna, a opinião pública, manipulada ou não pelo Governo, pode legitimar reduções nas liberdades individuais, mas sob a ótica internacional do Ocidente (e esse assunto permite o recurso à clivagem política entre Ocidente e Oriente da Guerra Fria), o autoritarismo, ao ferir a representatividade popular, macula diretamente a legitimidade do governo na determinação e condução dos objetivos do Estado, substitui o pragmatismo e legalidade por ideologias, colocando em risco a paz e a segurança internacionais, como evidencia o caso mais recente na história das relações internacionais: a Coréia do Norte[38].
Assim, se o Governo falha, sistematicamente, na administração das demandas internas, pode-se instaurar um estado de conflito que, em extremos, pode significar o rompimento da ordem pública e institucional, com reflexos além-fronteiras e riscos à integridade do próprio Estado que podem causar, por exemplo, fissão de soberania, desmembramento ou de fusão de Estados, eventualmente com o desaparecimento de um ou outro, como visto na Colômbia, na ex-URSS e na Alemanha que, com exceção deste último, foram antecedidos por conflitos armados internos com alto custo para os direitos humanos.
Finalmente, a situação de paz mais importante para este estudo, mas que está, como visto, intrinsecamente vinculado às duas perspectivas anteriores, é a situação de paz promovida pelo Estado que exercita paz em suas relações internacionais: a paz entre Estados.
O Direito, entendido como uma ordem legal, tem um importante papel na promoção e construção da paz, aliás, a paz é a própria razão do existir do Direito, como um necessário status das coisas, já que o Direito regula os conflitos de interesse, em sentido amplo, ou aquilo que pretenda interferir ou se inserir neste estado natural.
De sua vez, o Direito Internacional, como a ordem legal emergente essencialmente das relações interestatais, é um direito da paz que condena a guerra ou o uso da força como instrumento de política, mas que, por outro lado, não olvida da sua existência nem da natureza conflitiva e competitiva das relações interestatais, razão pela qual regula o uso da força, restringindo-o à apreciação de um único órgão e a um número reduzido de hipóteses permissivas relacionadas à autodefesa individual ou coletiva, conforme dispõem os Capítulos VII e VIII da Carta das Nações Unidas. Mas mesmo antes da ONU já havia esforços para construção de um sistema de Estados de paz.
 
5. O Estado de paz na história
 
            Como o capítulo seguinte cuidará do Estado armado, que poderia ser também traduzido, em contraposição ao Estado de paz, como o Estado de guerra, este item final de capítulo, que tem como objetivo a conexão deste com o capítulo seguinte, tratará brevemente do Estado de paz que, historicamente, não retrocede para além do século XIX, já que os eventos que culminaram na Primeira e Segunda Guerra Mundial, o último período de grandes e devastadoras guerras entre potências, faz parte de um período marcado pela História como “Cem Anos de Paz”, ou “Paz dos Cem Anos”, ou “Século da Paz”, entre o Congresso de Viena (1815) e a eclosão da Grande Guerra (1914).
            Dizer-se que o século XIX foi o Século da Paz pode traduzir, equivocadamente, que aquele período da história não conheceu a guerra. Na verdade, as guerras do Século da Paz, que não foram poucas, não foram tão prolongadas nem tão devastadoras como as guerras nos dois séculos anteriores, que contaram com “uma média de sessenta e sete anos de grandes guerras para cada um [ano de paz]”[39]. Karl Polanyi atribui esses Cem Anos de Paz não à ausência de causas de guerra, mas a um pacifismo pragmático que se sustentou com base no equilíbrio de poder promovido pela Santa Aliança e, depois, pelo Concerto Europeu[40].
            Segundo Polanyi, a ruptura da paz na Europa, com a Grande Guerra, em 1914, não se deu apenas pelo rompimento do sistema de equilíbrio de poder no início do século XIX pela Grã-Bretanha, mas por um conjunto de fatores que estão conectados ao fracasso da economia mundial sobre a qual repousava o sistema, notadamente do fracasso do padrão ouro[41].
            Neste sentido, Polanyi analisa a Paz dos Cem Anos por quatro de suas instituições: a) o sistema de equilíbrio de poder; b) o padrão ouro internacional; c) o mercado auto-regulável (haute finance) e; d) Estado liberal[42]. Para não fugirmos do objeto deste estudo, nem deste capítulo, consideraremos, resumidamente, a interação destas instituições para justificar a gradativa transformação dos objetivos do Estado de paz para o Estado de guerra, com a chamada Longa Guerra (1914-1945)[43]. Então, tomaremos como guia esta perspectiva de Polanyi para procurar entender como o Estado de paz se convola num Estado de guerra
            Desde Utrecht (1713)[44], o equilíbrio de poder sempre produziu a guerra, pois o princípio de poder lá moldado fundava-se na sobrevivência dos Estados mais fortes em relação ao incremento de poder de outros Estados. Assim, Polanyi descreve com certa surpresa que o equilíbrio de poder concertado após o Congresso de Viena (1815) tenha produzido uma paz relativa, ou pelo menos impedido que as grandes guerras dos dois séculos anteriores, especialmente os confrontos das guerras napoleônicas, se prolongassem no século que se iniciava[45].
            O que distingue o século XIX dos dois séculos anteriores, segundo Polanyi, é um forte “interesse pela paz” no campo econômico, cujos reflexos não se produziriam da mesma forma no campo militar, como veremos no próximo capítulo. Fora do sistema estatal, a paz era uma condição de ampliação das riquezas através do comércio. Em contraposição a esta situação, no século XVIII, “[o]s governos subordinavam a paz à segurança e soberania, isto é, a intentos que não podiam ser alcançados a não ser recorrendo-se a meios drásticos. Poucas coisas eram vistas como mais prejudiciais a uma comunidade do que a existência, em seu meio, de um interesse organizado pela paz. Ainda na segunda metade do século dezoito, J. J. Rousseau denunciava as corporações de ofício por sua falta de patriotismo, sob suspeita de que elas preferiam a paz à liberdade[46].
            O século XIX, então, conheceu um Estado de paz que convivia com um equilíbrio de poder militar que gradualmente se converteria num desequilíbrio de poder econômico em razão do acúmulo de capitais na Europa em mãos privadas, fazendo surgir um novo ponto de conflito de interesses entre os Estados que se encontravam concertadamente em paz.
            Para cobrir a análise das quatro instituições do século XIX, Polanyi divide os Cem Anos de Paz em três períodos: a) 1815-1846; b) 1846-1870; c) 1870-1914. O primeiro período foi marcado pela manutenção da paz pelos exércitos da Santa Aliança[47], que funcionavam como um instrumento sempre presente de coerção e, de certo modo, de dissuasão sobre Estados pequenos e conflitos. De 1846 a 1871, reconhecido como o “um dos quarto de século mais confusos e atravancados da história européia”, com uma paz estabelecida com menos segurança, removendo-se deliberadamente as causas da guerra em casos de potências pequenas[48]. Finalmente, o quarto de século seguinte à Guerra Franco-Prussiana (1870-1871) foi marcado pela atuação do Concerto da Europa que, como sua antecessora, a Santa Aliança, “eram, na verdade, meros grupamentos de Estados soberanos independentes e, portanto, sujeitos ao equilíbrio de poder e seu mecanismo de guerra[49].
            O objetivo do Concerto, através do equilíbrio de poder, era impedir a guerra entre as grandes potências. Contudo, “um sistema organizado de equilíbrio de poder só pode assegurar a paz, sem ameaça permanente de guerra, se puder atuar diretamente sobre esses esforços internos [crescimento da riqueza e da população que acabam por afetar o equilíbrio externo] e impedir o desequilíbrio in status nascendi. Uma vez que esse desequilíbrio tome impulso, só a força poderá endireitá-lo. É apenas senso comum afirmar que para se garantir a paz deve-se eliminar as causas da guerra; entretanto, nem sempre se compreende que, para fazê-lo, o fluxo de vida tem de ser controlado em sua fonte[50].
            O Concerto da Europa, no entanto, não dispunha dos mesmos instrumentos de controle político da Santa Aliança, no qual reis, aristocratas e Igreja formavam uma “internacional” de governo localmente efetiva, num amálgama de direito de sangue e direito divino[51] que precisava apenas da força para garantir a paz. O Concerto da Europa, quando muito, era uma federação frouxa e difusa, cujas reuniões das potências ocorriam raramente, mas que se valeu de forma muito menos freqüente e opressiva do uso da força que sua antecessora para manter a paz. O papel desempenhado pelos reis, aristocracia e Igreja o passou a ser pelo mercado auto-regulável, pela livre iniciativa num Estado liberal que se denominou de haute finance[52].
             A paz que derivou da haute finance provinha de fatores internos aos Estados e pode ser mais bem compreendida a partir da perspectiva de Keynes sobre “As conseqüências Econômicas da Paz”[53]. No último quarto do século XIX a Europa organizou-se “social e economicamente de modo a proporcionar a máxima acumulação de capital”. A haute finance acentuou a desigualdade da distribuição de renda que “tornou possível a vasta acumulação de riqueza fixa e de aprimoramento do capital que distinguiu essa época [último quarto do século XIX] de todas as outras”. E complementa Keynes mais adiante: “O hábito de acumulação dos europeus antes da guerra [Grande Guerra] era a condição necessária do mais importante dos fatores externos que mantinham o equilíbrio de poder na Europa[54], equilíbrio econômico que, segundo Polanyi, estava para o Estado sobre o padrão ouro internacional[55]. Assim, a paz na Europa tinha como pano de fundo uma nova organização da vida econômica: a paz interessava ao “livre comércio”.[56]
            No final da década de 1870, a Alemanha passa a utilizar o padrão-ouro, iniciando uma era de protecionismo e expansão colonial, cujas rivalidades seriam marcadas no Congresso de Berlim (1884-1885) que cuidaria de um concerto sobre a divisão da África e sobre novos mercados fora da Europa. Com a saída de Bismarck do controle político da Alemanha (1890), a Grã-Bretanha passou a ser a líder do interesse econômico da paz na Europa, período que coincide com o apogeu da haute finance. Logo no início do século XX, a Grã-Bretanha firma acordos com a França em relação ao Egito, Marrocos e Rússia, em relação à Pérsia (hoje Irã), fazendo substituir o Concerto da Europa por dois grupamentos de poder hostis – Grã-Bretanha, França e Rússia de um lado e a Alemanha, Áustria-Hungria e Itália do outro – sem um terceiro grupo ou aliança que procurasse balancear o poder entre os grupos, fazendo ruir definitivamente o sistema de equilíbrio de poder representado pelo Concerto da Europa.
            O rompimento do Concerto fez-se permear por uma série de tratados de controle de armas entre Estados dos dois grupos, especialmente na esfera naval. Os Estados de paz estavam se armando para um conflito de interesses econômicos e de poder que degringolaria numa Longa Guerra (1914-1945). O Estado de guerra, o Estado armado, ressurgia.


[1] Capítulo extraído da obra de Rodrigo Fernandes More, “Direito Internacional do Desarmamento: o Estado, a ONU e a Paz (São Paulo: Editora Lex, 2007, 448 p., 16 Capítulos). O autor é doutor em direito internacional pela USP.
[2]A alteração dos interesses leva às crises dos modelos de Estado fundadas nas relações de união ou rompimento entre as esferas do Estado e da sociedade. O “Welfare State”, ou Estado de Bem-Estar ou assistencial, resultado da “estatização da sociedade” ou da “socialização do Estado”, foi rompido pela incompatibilidade entre as “duas funções do Estado assistencial: o fortalecimento do consenso social, da lealdade para com o sistema das grandes organizações de massa, e o apoio à acumulação capitalista com o emprego anticonjuntural da despesa pública”. (REGONINI, Glória. Estado do bem-estar. In: BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de política. 5. ed. Brasília: Ed. da UnB, 2000. p. 418 e 419). Outro exemplo é a crise do Estado Contemporâneo que cede espaço ao Estado Mercado, a partir das “mudanças ocorridas na estrutura material e na estrutura social do sistema jurídico, que impuseram mudanças a nível formal e político ao Estado”. A estrutura material do direito importa na “liberdade de concorrência, no mercado, reconhecida como comércio aos sujeitos da propriedade”; já a estrutura social do sistema jurídico lida “com a questão social e as políticas reformistas de integração da classe trabalhadora”. (GOZZI, Gustavo. Estado contemporâneo. In: BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. op. cit., p. 401). O Estado Mercado surge, na visão de Philip Bobbitt, a partir da determinação de novos objetivos: a) a maximização das oportunidades de seu povo; b) a privatização da atividade estatal (Estado mínimo) e; c) a redução da influência do voto sobre o governo nas decisões de Estado, tornando-as mais sensíveis às demandas do mercado (BOBBITT, Philip. A guerra e a paz na história moderna: o impacto dos grandes conflitos e da política na formação das nações. Rio de Janeiro: Campus, 2003. Prólogo, s.nº). Na verdade, não há uma forma única em vigor que expresse, também de forma uníssona, os objetivos de todos os Estados, como preponderantemente voltados ao assistencialismo, ou às questões estritamente jurídicas e políticas de Estado, como a segurança interna e externa, ou aos movimentos de mercado, daí afirmarmos que o Estado (os Estados) está em constante transformação, ou numa crise de objetivos.
[3]As “novas ameaças” são assim referidas por Philip Bobbitt (op. cit., Prólogo, s.nº.) e por John Ikenberry (IKENBERRY, G. John. A ambição imperial. Política Externa, São Paulo, v. 11, n. 3, p. 33-36, dez./fev. 2002-2003), por exemplo, ambos referindo-se à “The National Security Strategy of the United States of America”, de setembro de 2002, conhecida como Doutrina Bush, da guerra de prevenção contra a ameaça do terrorismo.
[4]Artigo 1 (3) da Carta da ONU (RANGEL, Vicente Marotta. Direito e relações internacionais. 7. ed. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2002. p. 37).
[5]Kenneth H. Waltz analisa os sistemas, interno e internacional, a partir da análise da estrutura política e de suas unidades de interação (WALTZ, Kenneth H. Teoria das relações internacionais. Lisboa: Gradiva, 2002. p. 114). Neste estudo, contudo, não é nosso objetivo analisar com profundidade, como fez Waltz, a estrutura política interna para poder compreender, como diz o autor, a “opaca estrutura político-internacional” (p. 116). A proposta sistêmica de Waltz permite distinguir entre a ordem interna e a internacional para além da proposta tradicional de distinção de relações verticais (interna) e horizontais (internacional), a exemplo de Richard A. Falk (International jurisdiction: horizontal and vertical conceptions of legal order, in Temple Law Quaterly, 1959, vol. 32, p. 295), que apresenta em artigo um debate sobre o conceito horizontal e vertical da ordem legal internacional. No entender de Falk, a ordem internacional é essencialmente horizontal, de coordenação entre Estados, diferentemente da ordem interna, onde prevalece a hierarquia entre instituições, com o poder verticalizado e centralizado na figura do Estado. Na esfera interna, a estrutura política adotada pelo Estado determina o sucesso na consecução de seus objetivos; já na esfera internacional, a noção de estrutura como parte de um sistema ordenado desafia a própria natureza anárquica do chamado sistema internacional (p. 126). Mas se existe um sistema internacional (e defenderemos mais adiante neste estudo sua existência), é de se concordar existir uma estrutura internacional que Waltz define “em termos de unidades políticas primárias de uma dada era, sejam elas cidades-Estado, impérios, ou nações. As estruturas emergem da coexistência dos Estados. Nenhum Estado tenciona participar na formação de uma estrutura pela qual, ele e os outros, são constrangidos. Os sistemas políticos internacionais, como os mercados econômicos, são originalmente individualistas, gerados espontaneamente e involuntários” (p. 129). Assim, as organizações internacionais, ou mesmo os tratados formais são partes desta estrutura criada para coexistência e, como exemplo do campo do desarmamento, permeada por cláusulas, especialmente as de retirada, que reduzem os riscos de constrangimento indesejado.
[6]HOLSTI, Kalevi J. The State, war and the State of war. Cambridge: Cambridge Studies in International Relations, Cambridge University Press, 1996. p. 82.
[7]HOLSTI, Kalevi J. op. cit.
[8]Um pólo é um Estado e a polarização é a propensão dos Estados em formar alianças em torno de um pólo. Um sistema com múltiplos centros de poder tende a desenvolver alianças polarizadas a partir do aumento dos níveis de conflitos, enquanto se estreitam os laços de cooperação. (GELLER, Daniel S.; SINGER, J. David. Nations at war: a scientific study of international conflict. Cambridge Studies in International Relations. Cambridge: Cambridge University Press, 1998. p. 114).
[9]Multilateralismo não se confunde com multipolarismo, a existência de muitos pólos. O termo “multilateral” expressa, no Direito Internacional, pelo menos duas idéias: a) de um acordo formal de muitas partes, para diferenciá-los entre atos unilaterais, acordos bilaterais, trilaterais ou quadrilaterais (i.e. Mercosul) ou; b) de uma assembléia, conferência, concerto ou reunião de muitas partes, que podem traduzir, ou não, um contexto de universalidade se do exercício do multilateralismo emergir uma norma, legal ou moral, por consenso ou por maioria, podendo ser exercido isoladamente ou em grupos de interesse, cuja frágil coesão, muitas vezes momentânea e pontual, não permite sejam confundidos com alianças e, conseqüentemente, com um movimento de polarização, conforme definimos na nota anterior.
[10]A definição de “regime” que lançamos desde a introdução é baseada na definição de Pope Atkins, Robert Keohane e Stein, citados por Marcelo F. Valle Forounge, complementada por notas de Jayantha Dhanapala e Randy Ridell, ambos estudos publicados pela Unidir. Confira-se: VALLE FOROUNGE, Marcelo F. Desarme nuclear: regímenes internacional, latinoaméricano y argentino de no proliferación. Genebra: United Nations, 2003. p. 14. (Unidir/2003/4); e DANAPHALA, Jayantha; RYDELL, Randy. Multilateral diplomacy and the NPT: an Insider´s Account. Genebra: United Nations,2005. p. 102-103. (Unidir2005/3).
[11]Este ponto será explorado no Capítulo VI, quando analisarmos detalhadamente o Parecer da CIJ sobre a Legalidade da Ameaça ou Uso de Armas Nucleares.
[12]ARON, Raymond. Paz e guerra entre as nações. Brasília: Ed. da UnB, IPRI; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 2002. p. 229. Também: BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. op. cit., p. 915.
[13]Doutrina Bush é o nome pelo qual ficou conhecida a “The National Security Strategy of the United States of America”, publicada em 17/09/2002, cujo Capítulo V (Prevent Our Enemies from Threatening Us, Our Allies, and Our Friends with Weapons of Mass Destruction) cuida de introduzir a primeira referência no documento aos “Rogue States”, relacionando-os ao terrorismo. Disponível em <http://www.whitehouse.gov/nsc/nss.html>. Acesso em: 03 maio 2004
[14]A retirada da AIEA em 1994 e os teste de míssil balístico realizado próximos (atravessando o território) ao Japão pela Coréia do Norte, em 1998, são vistos como manobras políticas para forçar uma negociação com os EUA, no sentido de que a cessação dos testes e uma readequação do comportamento do Estado sejam retribuídas com a retirada das restrições comerciais impostas ao país em razão de um alegado apoio ao terrorismo internacional.
[15]BOBBIO destaca em seus estudos os relevantes apontamentos sobre a paz pesquisados por JOHAN GALTUNG, a quem credencia como um dos grandes expoentes do Peace Research. GALTUNG é autor de vários artigos sobre a paz, publicados no Journal of Peace Research, do Instituto de Pesquisas Sociais de Oslo (BOBBIO, Norberto. Teoria geral da política: a filosofia política e a lição dos clássicos. Rio de Janeiro: Campus, 2000. p. 516, 911 e 917).
[16]MORE, Rodrigo Fernandes. Fundamentos das operações de paz das Nações Unidas e a questão de Timor Leste. 2002. p. 25. Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2002.
[17]Id. Ibid., p. 26-27.
[18]Id. Ibid., p. 28.
[19]No Brasil há uma excelente tradução desta obra publicada pela Universidade de Brasília em conjunto com o Instituto de Pesquisa de relações Internacionais e Imprensa Oficial do Estado de São Paulo.
[20]KANT, Immanuel. A paz perpétua e outros opúsculos. Lisboa: Edições 70, [s.d.]. p. 121.
[21]Id. Ibid., p. 122.
[22]Id. Ibid., p. 126. Segundo Soraya Nour, “[o]s conceitos de guerra e paz têm para Kant caráter estrutural, vinculado à estrutura jurídica institucional O conceito de violência estrutural significa que num estado não-jurídico as pessoas e povos isolados não estão seguros nem contra a violência dos outros nem para fazer “o que lhes parece justo e bom”. O estado de natureza (status naturalïs – uma hipótese, e não um dado histórico) entre os homens não é de paz, mas sim de guerra – mesmo que não haja guerra, devido à ameaça permanente de hostilidades. A mera abstenção de hostilidades não representa nenhuma segurança para a paz, pois não impede que as pessoas e os povos se tratem reciprocamente como inimigos[..].A paz deve portanto ser assegurada por estruturas jurídicas institucionais, ou seja, o estado de paz deve ser fundado (gestiftet) por meio do direito público: deve sair do estado de natureza e entrar num estado civil (burgerlinchen Zustand), um estado no qual é legalmente definido o que é de cada um” (NOUR, Soraya. À paz perpétua de Kant: filosofia do direito internacional e das relações internacionais. São Paulo: Martins Fontes, 2004. p. 37-38).
[23]KANT, Immanuel. op. cit., p. 135.
[24]Em 8 de janeiro de 1918 o presidente dos EUA, Woodrow Wilson, proferiu um discurso que encerrava 14 propostas (conhecidas como “Catorze Pontos”) para por fim à Grande Guerra, lançando as bases para o Tratado de Versalhes e criação da SDN. O 14º ponto a que nos referimos assim estabelecia: “XIV. A general association of nations must be formed under specific covenants for the purpose of affording mutual guarantees of political independence and territorial integrity to great and small states alike.” Ver também: CASTRO, Marcos Faro. De Westphalia a Seattle: a teoria das relações internacionais em transição. Cadernos do REL, Brasília, v. 20, 2001. p. 15.
[25]KANT, Immanuel. op. cit., p. 136.
[26]BOBBIO, Norberto. El problema de la guerra y las vias de la paz. Barcelona: Gedisa, 1982. p. 173; BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. op. cit., p. 914.
[27]BOBBIO, Norberto. El problema de la guerra y las vias de la paz, cit.
[28]ARON, Raymond. Paz e guerra entre as nações. p. 158; In: BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. op. cit., p. 915.
[29]Assim como a abordagem das relações internacionais, a paz também pode ser construída a partir de uma abordagem “clássica”, não necessariamente empírica, em oposição a uma abordagem “científica”, essencialmente empírica e praticada pelos norte-americanos. Hedley Bull, discípulo de Martin Wight, ambos da Escola Inglesa das Relações Internacionais, são defensores da abordagem clássica e críticos do realismo de Edward Carr e Hans Morgenthau, os dois principais expoentes da corrente realista. A Escola Inglesa, além do antagonismo com a escola norte-americana, notabilizou-se pela tradição grociana, “que se caracteriza pelo apelo a autores ´clássicos´ do direito internacional, à história e à filosofia política, e por dar ênfase à existência de uma ordem internacional baseada em ´direitos´ e ´obrigações comuns´ de caráter moral e jurídico”. (CASTRO, Marcos Faro. op. cit., p. 22). Assim, nesta perspectiva, a paz também pode ser refletida a partir de uma perspectiva teórica, não apenas filosófica ou histórica, mas também jurídica, como um direito e uma obrigação moral e jurídica.
[30]BOBBIO, Norberto. Teoria geral da política: a filosofia política e a lição dos clássicos, cit., p. 516.
[31]Id. Ibid., p. 517.
[32]Estas três perspectivas – realista, racionalista e idealista – são referidas por Celso Lafer como os “três paradigmas clássicos da convivência internacional, sistematizados por Martin Wight: o hobbesiano-maquiavélico, o grociano e o kantiano”, respectivamente. (LAFER, Celso. Comércio, desarmamento, direitos humanos: reflexões sobre uma experiência diplomática. São Paulo: Paz e Terra, 1999. p. 147).
[33]BOBBIO, Norberto. Teoria geral da política: a filosofia política e a lição dos clássicos, cit., p. 517.
[34]BOBBIO, Norberto. Teoria geral da política: a filosofia política e a lição dos clássicos, cit., p. 519.
[35]MORE, Rodrigo Fernandes. op. cit., p. 28.
[36]O que se faz com maior precisão, em tese, em regimes democráticos, associados ao exercício de um conceito cosmopolita de “boa governança” que, de sua vez, não se vincula necessariamente ao exercício da democracia, nem à existência de um governo, mas à realização plena de objetivos comuns ainda que não exista um sistema de Direito que os apóie. O conceito de boa governança é defendido por James Rosenau, um dos críticos da visão realista da política internacional ao lado de Roberto Keohane e Joseph Nye, cujos estudos partem de uma perspectiva teórica original de estudo das relações internacionais, de inspiração liberal e pluralista, reconhecida como “Pluralismo”. Neste contexto teórico, Keohane e Nye propõem o conceito de “interdependência complexa”, fundado em duas dimensões da interdependência – a “vulnerabilidade”, que se refere aos custos sociais, políticos e econômicos das mudanças que podem ocorrer na adequação das políticas locais a fatores externos, como a adesão ou não a um regime de controle de armas; e a “sensibilidade” em perceber a necessidade de mudança das políticas internas em relação a fatos externos, como pode sugerir a corrida armamentista. A teoria da interdependência complexa baseia-se no binômio – fechamento total ou internacionalização pela via de organizações internacionais. Como o fechamento total não corresponde a uma expressão válida de relação interstatal, esta teoria sugere a valorização das organizações internacionais como foros de negociação de interesses estatais, mas sem desconsiderar o importante papel de atores privados (não-estatais) para a consecução dos objetivos dos Estados. Neste sentido, Rosenau desenvolveu o argumento de que a política mundial passou a estar bifurcada entre uma esfera de relações interestatais – o mundo “estadocêntrico” – e outra, de relações transnacionais, isto é, relações entre atores não-estatais transnacionalmente articulados – o mundo “multicêntrico”. (CASTRO, Marcos Faro. op. cit., p. 25-26).
[37]PECK, Connie. Sustainable peace: the role of the UN and regional organizations in preventing conflict. Oxford: Rowman & Littlefield Pubishers, 1998. p. 15.
[38]STOPPINO, Mario. Autoritarismo. In: BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. op. cit., p. 94-104.
[39]Além da Guerra da Criméia – um acontecimento mais ou menos colonial – a Inglaterra, a França, a Prússia, a Áustria, a Itália e a Rússia estiveram em guerra uns contra os outros apenas dezoito meses…mesmo a mais violenta dentre as grandes conflagrações do século dezenove, a Guerra Franco-Prussiana de 1870-71, terminou em menos de um ano, e a nação derrotada teve condições de pagar uma soma sem precedentes como indenização de guerra, sem que isso incidisse em qualquer perturbação para as moedas existentes” (POLANYI, Karl. A grande transformação: as origens da nossa época. Rio de Janeiro: Ed. Campus, 1980. p. 25).
[40]POLANYI, Karl. op. cit., p. 24 e 39.
[41]Id. Ibid.
[42]Classificadas de um certo modo, duas dessas instituições eram econômicas, duas políticas. Classificadas de outra maneira, duas delas eram nacionais, duas internacionais. Entre si elas determinavam os contornos característicos da história de nossa civilização” (POLANYI, Karl. op. cit., p. 23).
[43]Philip Bobbitt identifica uma “Longa Guerra” entre 1914 e 1945, pois a Grande Guerra não teria acabado com a Paz de Versalhes, mas se prolongando em suas causas e efeitos até o fim da Segunda Guerra. Para se referir ao período de 1914 a 1945, usaremos desta nomenclatura de Bobbitt. (BOBBITT, Philip. op. cit., p. 22).
[44]A Paz de Utrecht na verdade compõem-se de dois tratados, o Tratado de Utrecht (1713) e o Tratado de Rastadt (1714), cujo conjunto pôs fim à Guerra de Sucessão Espanhola entre Inglaterra, França e Espanha em razão do testamento (ou Tratado de Partilha) do rei Carlos II, da Espanha, cuja execução poderia unificar a França (Bourbons ou Habsburgos) e Espanha, e formar o maior Estado régio da Europa, situação que contrariava os interesses especialmente da Inglaterra e desequilibrava as relações de poder na Europa. (BOBBITT, Philip. op. cit., p. 119-120). Nos tratados, os signatários declararam sua adesão formal ao princípio do equilíbrio de poder, incorporando um sistema de garantias mútuas de sobrevivência, tanto para Estados fortes quanto para fracos, por meio da guerra. Até então, o equilíbrio de poder se preocupava apenas com Estados cuja existência convinha manter, notadamente os Estados fortes (POLANYI, Karl. op. cit., p. 26).
[45]POLANYI, Karl. op. cit., p. 26.
[46]Id., loc. cit.
[47]A Santa Aliança era um “pacto entre Áustria, Prússia e Rússia visando organizar as potências européias para intervirem em caso de revoluções internas” (BOBBITT, Philip. op. cit., p. 881).
[48]A invasão holandesa da Bélgica, em 1831, levou à neutralização daquele país na ocasião. Em 1855 a Noruega também foi neutralizada. Em 1867 Luxemburgo foi vendido à França pela Holanda; a Alemanha protestou e Luxemburgo foi neutralizado. Em 1856, a integridade do Império Otomano foi declarada essencial para o equilíbrio da Europa e o Conselho da Europa procurou sustentar aquele império; após 1878, quando sua desintegração foi considerada essencial para aquele equilíbrio, promoveu-se seu desmembramento da mesma maneira ordenada, embora em ambos os casos a decisão significasse vida e morte para inúmeros pequenos povos. Entre 1852 e 1863 foi a Dinamarca, e entre 1851 e 1856 foram as Alemanhas que ameaçaram perturbar o equilíbrio, e cada um dos casos os pequenos Estados foram forçados a se conformar pelas Grandes Potências. Nesses exemplos, a liberdade de ação a elas oferecida pelo sistema foi usada pelas Potências para alcançar um interesse conjunto – que aconteceu ser a paz” (POLANYI, Karl. op. cit., p. 27-28).
[49]Id. Ibid., p. 27.
[50]Id. Ibid., p. 28.
[51]POLANYI, Karl. op. cit., p. 28.
[52]“A haute finance é representada pelo surgimento do banco internacional no século XIX, como uma instituição sui generis, peculiar no último terço o século dezenove e ao primeiro terço do século vinte, funcionou neste período como um elo principal entre a organização política e a econômica do mundo. Ela forneceu os instrumentos para um sistema internacional de paz, que foi elaborado com a ajuda das Potências, mas que estas mesmas potências não poderiam ter estabelecido ou mantido.” (POLANYI, Karl. op. cit., p. 29).
[53]KEYNES, John Maynard. As conseqüências econômicas da paz. Tradução de Sergio Bath. São Paulo: IMESP; Brasília: Ed. da UnB, 2002. p. 5-16. (Clássicos do IPRI; vol. 3), em especial o Capítulo II: A Europa antes da Guerra.
[54]KEYNES, John Maynard. op. cit., p. 11.
[55]POLANYI, Karl. op. cit., p. 39.
[56]Id. Ibid., p. 34.

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