Este nosso trabalho, em função do tema, ou mesmo, em razão da ausência de textos doutrinários em número suficiente a tratar do assunto, exige de nós, de certo modo, uma real exposição de motivos. E, embora a questão dos direitos autorais no Brasil tenha a salvaguarda constitucional, conforme artigo 5º, inciso XXVII – aos autores pertence o direito exclusivo de utilização, publicação ou reprodução de suas obras, transmissível aos herdeiros pelo tempo que a lei fixar – e ainda, esteja a matéria regulada de forma abrangente pela Lei 9.610/98, ou seja, por norma fundamental, positiva e exeqüível, ainda assim, em nosso dia-a-dia nos deparamos com lesões notórias a estes direitos autorais, morais e intelectuais protegidos por lei.
É tão comum observarmos o “furto” de idéias, argumentos, teses, estilos, enfim, a forma inventiva e criativa é rotineiramente usurpada, subtraída de maneira escusa, e, muitas das vezes, sequer constatada pelo verdadeiro e legítimo dono, sim, utilizamo-nos a palavra “dono” para expressar a extensão deste direito de propriedade e domínio, que sob a ótica jurídica, nos termos do artigo 1228, caput, do Código Civil de 2002, consiste na: faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha.Sendo que, no que tange aos direitos intelectuais, tal propriedade é, impreterivelmente, parte da personalidade humana.
Aqui cabe um parêntese, uma reflexão a partir da certeza encontrada por René Descartes, aquela nascida da dúvida atroz de qualquer ser vivente quanto à realidade e limites de sua existência, temos: “Penso, logo existo”[1]. Mas, esta afirmativa de Descartes, como um argumento convincente do imaginário e da cognição por ele alcançada, vem atrelar nosso raciocínio àquele que aponta o “insumo intelectual” como um dos elementos de maior valia, um ícone expositivo e identificador da personalidade e essência do ser humano, portanto, indestacável daquele que o possui, ou melhor, da mente da qual se originou.
E sendo o homem um ser racional, capaz de acumular conhecimento, capaz também de evoluir e expandir-se através de sua cultura, e tem posse da informação de que na atualidade social, não nos basta pensar. É obvio que, se pensamos, conseqüentemente, existimos, é fato sedimentado na afirmativa de Descartes, e por nós não refutado. De sorte, a magia criadora não se restringe à pauta do pensamento comum, à formulação basilar das “idéias”, daquelas restritas e necessárias à nossa sobrevivência na comunidade social. A criação é uma força vetorial, por conseguinte, produtiva; erigindo e edificando pensamentos que no mundo exterior ganham forma, e por qualquer meio suporte, são capazes de nos imprimir. Questões estas, que também nos foram colocadas por Descartes:
“[…] essência ou natureza reside unicamente em pensar e que, para que exista, não necessita de lugar algum, nem depende de nada material, de modo que eu, isto é, a alma, pela qual sou o que sou, é totalmente diversa do corpo e mesmo mais fácil de ser reconhecida do que este e, ainda que o corpo não existisse, ela não deixaria de ser tudo o que é”.[2]
Se, longe de ser falsa tal afirmativa, compreendemos, desde logo, que um homem nada mais é, senão sua obra, fruto de seu intelecto e criação de seu espírito. Tanto que, sua obra permanece além de sua existência física.
Não obstante, este o conceito trazido pela Lei 9.610/98, que em seu artigo 7º preceitua: “São obras intelectuais protegidas as criações do espírito, expressas por qualquer meio ou fixadas em qualquer suporte, tangível ou intangível, conhecido ou que se invente no futuro”. (grifo nosso).
Em outra oportunidade, em trabalho sobre a personalidade, tivemos a possibilidade de dissertar sobre a inteireza humana, demonstramos estar ela envolta e valorada pela inestimabilidade
[3] uma característica real, haja vista, não se perderem pelo desuso. A personalidade é o que diferencia os seres, em suas distintas características e, quando apartada do juízo de valor, significa um conjunto de elementos particularizadores que distinguem o indivíduo dos demais. E, nesta órbita, cada um é um ser único; fenômeno que não se repete. Cada um de nós possui seus caracteres diferenciadores, quer intelectual, quer moral, ou ainda, emocional, enfim, sofremos influência multifatorial do mundo externo, no desenvolvimento de nossa personalidade, razão pela qual, a força criadora se exprima sempre de uma maneira única e pessoal. E, diante disto, tudo que integra esta essência personalíssima, necessariamente ganha o
“status” de bem, em função não só de sua raridade, mas, principalmente, pela impossibilidade de reprodução espontânea. e, garantida ainda, pela imprescritibilidade. Ou seja, a personalidade possui direitos específicos e inerentes, tangidos por
Embora, seja cediço, que no âmbito penal, o Código brasileiro disponha de apenas um dispositivo literalmente voltado à proteção dos direitos intelectuais, conforme se verifica no Título III, Capítulo I, artigo 184, e seus parágrafos. E o dispositivo aqui mencionado, nos parece estar mais afeito ao delito de contrafação, pois, resta-nos claro na leitura na lei, haver uma condicionante expressa à conduta delitiva, apresentando-se como um segundo elemento subjetivo do tipo, que reside além do dolo, que é o: “intuito de lucro”, ainda que indireto. Todavia, o “intuito de lucro” mencionado pela lei, evidentemente, volta-se tão-somente ao cunho econômico, noutras palavras, sua significância legal se restringe e se encerra numa dotação de resultado com aumento ou manutenção de riqueza. Porém, ao nosso ver, ao tratar de delitos praticados na seara dos direitos intelectuais, mais apropriado seria encontrar no texto legal uma expressão adequada e apta a designar o ânimo do agente, que seria: “intuito de vantagem”, em vez de lucro, pois, a vantagem sim, pode pairar em qualquer órbita de benefícios auferidos, enquanto o lucro nos dá a noção cartesiana de algo que sobreveio ou sobressai ao custo, que no caso em tela, para o agente delitivo, o dispêndio de seu custo é zero, se considerarmos que o objeto que lhe traz vantagens foi simplesmente usurpado, portanto, isento de custo.
Neste ponto, é condição primordial, lembrar a diferenciação havia e apontada pela doutrina, apartando o conceito dado à contrafação daquele que se doa ao plágio. A contrafação pura e simples tange à reprodução não autorizada pelo detentor dos direitos autorais, tendo seu centro de atuação ligado à vantagem econômica auferida em razão desta reprodução, e não tem como objetivo o reconhecimento da titularidade da obra, enquanto o plágio permite uma usurpação fracionada, podendo ser total ou parcial, e busca empreender a apresentação do objeto do furto, como sendo de sua propriedade ou autoria. Noutras palavras, na contrafação há um “animus” voltado à vantagem econômica, no plágio, a motivação não se direciona ao lucro, mas sim, à afirmação social do conhecimento, capacidade e prestígio trazido àquele a quem se intitula e se reconhece a autoria da obra.
E, sob este prisma, a figura jurídica do plágio apresenta maior gravidade, posto que, não se encerra com a usurpação, ao contrário, enseja sempre um delito conexo, pois, a partir do momento em que o agente apresenta a obra usurpada com sendo de sua titularidade, exterioriza e propaga uma conduta extensiva e fraudulenta. O que faz com que o conhecedor da obra seja também uma vítima, desta feita, do crime de estelionato. Assim, no que concerne ao furto de bem intelectual, reconhecemos um delito progressivo, pois, contém uma passagem de ação que vai de uma figura típica de meio, até outra de maior gravidade, sendo esta última denominada delito-fim, e este deve ser realizado para que o agente alcance o resultado pretendido. Todavia, estas questões conceituais, ou, de reconhecimento de um “dolo” genérico ou específico, não ganham importância, se considerarmos tão-somente o mal que elas nos causam.
É interessante anotar que, para os efeitos legais os direitos intelectuais são considerados bens móveis, estamos, portanto, falando em síntese do delito de “furto”, onde a conduta tipificada se expressa como: “subtração de coisa alheia móvel, com o escopo de dela se apoderar, definitivamente, em proveito próprio ou de outrem”, e nesta mesma ordem, encontra-se também os bens intelectuais. Razão pela qual, nossa tese neste trabalho aponta ser esta a verdadeira conduta típica. Vê-se que a usurpação da propriedade intelectual é um gênero que abrange inúmeras espécies, ou melhor, o agente delitivo utiliza-se das mais variadas formas e mecanismos, para que haja sua manifestação. Noutras palavras, a conduta dolosa se exterioriza por diferentes modos de execução, porém, em todos eles é dolosa, sempre há uma vontade livre e consciente determinada a alcançar deliberado fim; pode ainda, ser variável quanto ao grau de sua apropriação. Enfim, pode o referido furto ser variável quanto aos parâmetros quantitativos, abranger seu objeto de modo total ou parcialmente, mas, nem por isto, atinge com menor lesividade e importância o bem patrimonial contido no acervo de outrem.
Presente em todos os segmentos, atingindo obras literárias, artísticas ou científicas, trazendo consigo uma indignação que nos assola na rotina diária, fazendo com que o furto se torne um delito corriqueiro, e, infelizmente, sempre propagação. Quem de nós, já não reconheceu a repetição de um argumento de roteiro, dando, por isto, similitude às novelas, textos teatrais e filmes. Por vezes, nossa compreensão reconhece seqüências inteiras, cenas que são pinçadas de uma obra, para dolosamente serem insertas em outra; obras de arte, que em verdade só reproduzem o “artifício” de quem nada produz; textos que transcrevem integralmente uma idéia, sim, a exposição de uma mesma idéia, onde apenas houve uma transmutação de palavras, e, as vezes, com maior desrespeito à Lei e aos direitos do Autor, a reprodução expositiva é “ipsis literis”, onde o agente delitivo sequer qualquer demonstra qualquer preocupação com a evidência. Sem deixar de mencionar a questão dos nomes, marcas e sinais de identificação de produtos industriais, que são também comumente usurpados.
Como dito, sob esta nossa ótica, as questões aqui apontadas, notadamente, também são ilícitas sob o ponto de vista civil, tangendo às possibilidades de tornar indene o sujeito passivo da lesão. Todavia, é na questão penal que a conduta de fato e de direito encontra-se tipificada, e é também por esta via de acesso que deve ser reprimida.
E, em tempos modernos, com o avanço tecnológico, e a difusão da informática, dentro da realidade atual em que o mundo se identifica como aldeia global, e o acesso às informações interliga pessoas; onde o cenário dos acontecimentos instantâneos é nomeado como: “Sistema Network”, a coisa ilegal ganha maior vulto e propagação, em função das facilidades de acesso não só ao material objeto do furto, como também, na agilidade e simplicidade exigidas à sua reprodução.
Não menos verdade, é que nos dias atuais o capital humano, e nele incluso toda a capacidade inventiva e fonte criadora existente em cada um de nós, ganha atenção e importância. Segundo Richard Crawford, em seu livro:
“In the era of human capital: the talent, the intelligence and the knowledge as an economic power. Impacts in enterprises and in investiment decisions”[4], já no título de sua obra nos revela a nova concepção de valores antes não apreçáveis, e que hoje, são reconhecidamente de cunho econômico, ainda que, não estejam empregados diretamente no suporte de uma determinada obra. Crawford faz uma análise primorosa da gestão do conhecimento, conseqüentemente, do
rol dos bens imateriais – ativos intangíveis, tais como: talento, capacidade intelectual, inteligência etc. E com isto, demonstra que estes são elementos que, hoje, no âmbito do mundo empresarial, diferenciam pessoas e, são os verdadeiramente “senhas de acesso” relevantes no momento da contratação.
Diante disto, retomando propositadamente à afirmação de René Descartes – “Penso, logo existo” – reafirmamos que, na contemporaneidade não nos basta pensar, ou, é possível afirmar que, nem todos estão aptos a pensar de modo inovador ou criativo. O que faz com que aqueles que possuem este talento, sejam os detentores de um objeto cada dia mais raro e valorizado na demanda deste mercado moderno, que é a inventividade.
Mas, embora estejamos convictos de que talento, competência, capacidade, inventividade, inovação, entre outros, constituam um universo multidimensional, um conjunto de diferentes habilidades, que, por constituir em um potencial de componentes internos, se perfazem em atributos pessoais e personalíssimos, integrantes da personalidade, e de tal modo, se traduzem em bens e valores natos, isto é, espontâneos e involuntários. A exemplo da inteligência, que é uma capacidade mental geral e ampla, que envolve habilidade de raciocínio e desempenho intelectual de percepção. Conceituada por Howard Gardner, a partir da Teoria das Inteligências Múltiplas, como: "
um potencial biopsicológico para processar informações que pode ser ativado num cenário cultural para solucionar problemas ou criar produtos que sejam valorizados numa cultura"
[5], e, desta forma, não pode e nem deve estar atrelada ou correlacionada às letras de uma atividade acadêmica, e neste aspecto, diferencia-se da cultura em si, pois, esta sim, é objeto de acumulo, ensinamento e aprendizagem., (grifo nosso)
Contudo, mesmo ante a constatação de que a criação inventiva é um privilégio adstrito somente há alguns de nós, o fato de não sermos a par destes, senhorio destas mesmas qualidades, não é sob qualquer aspecto elemento ou evento autorizante, tampouco, permissivo à prática de um delito. E, desta forma, qualquer que seja a modalidade: contrafação ou plágio, o furto de bem autoral ou intelectual, não minimiza a gravidade da conduta, não abre ao sujeito ativo qualquer excludente, também não o isenta do desprezo social. Com previsão legal integral – Lei 9.610/98 – Art. 22. Pertencem ao autor os direitos morais e patrimoniais sobre a obra que criou. Daí porque, toda e qualquer conduta empreendida com o objetivo de usurpação, deve ir de encontro à tipificação descrita no delito de furto, conseqüentemente, deve sofrer seu agente as sanções e os rigores da lei.
Autora: Suzana J. de Oliveira Carmo
Funcionária Pública do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, Especialista em Direito Constitucional pela Escola Superior de Direito Constitucional – ESDC/SP e, em Direito Processual Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo -PUC/SP., pós-graduada em Semiótica Psicanalítica – Clínica da Cultura, também pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo -PUC/SP.
Trabalho elaborado em julho/2008
[1] DESCARTES, René. “
Discurso sobre o Método”. Coleção: Ciências Sociais & Filosofia. 9ª ed., Tradução: Márcio Pugliesi e Norberto de Paula Lima, Curitiba: Hemus, 2000. Quarta Parte, p.66. A frase:
"Penso, logo existo", aparece nesta obra de Descartes, em que, através da dúvida radical, encontra o princípio da certeza racional. E, de posse da certeza, afirma haver uma autonomia entre corpo e alma, compreendendo a última nossa real existência. E, por reconhecer independência entre o físico e o mental, afirma ainda, que na alma é que se encontra aquilo que somos, e mesmo sem a materialidade do corpo, um ser permanece sendo o que é.
[2] Op. Cit, nota 1, p.67.
[3] Inestimabilidade em seu sentido literal e axiomático, denotação de que algo é por natureza precioso, caro, inimaginável, de imensurável valor e estima.
[4]No Brasil, com tradução de Luciana B. Gouveia,
“Na era do capital humano:o talento, a inteligência e o conhecimento como forças econômicas. Seu impacto nas empresas e nas decisões de investimento”, publicado pela Editora Atlas, 1994.
[5] Gardner, H.
Inteligências Múltiplas: a teoria na prática. Tradução Maria Adriana Veríssimo Veronese.Porto Alegre: Artes Médicas. 1995. p.47.
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