Água de Lastro – ou De Como os Navios Cargueiros e de Turismo Transformam Nossos Oceanos, Rios e Mares em Latrina – ou Se Chegou ou se Partiu, Ninguém Sabe, Ninguém Viu

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O que é “água de lastro”?

Quem é do mar — ou um caiçara bruto e arredio como eu — sabe muito bem que o mar é um monstro vivo, faminto, com sua imensa goela eternamente à espreita dos aventureiros, dos desavisados e dos atrevidos em geral. De todos os perigos, o mar esconde um sobre o qual quase ninguém fala, exceto as gentes do mar e os caiçaras brutos como eu: a água de lastro. A Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania aprovou o Projeto de Decreto Legislativo nº 1053/08, da Comissão de Relações Exteriores e de Defesa Nacional, que ratifica a Convenção Internacional para Controle e Gerenciamento da Água de Lastro e Sedimentos de Navios. Segundo a Convenção, a inspeção da água de lastro passa a ser obrigatória. As autoridades navais deverão dispor de meios de coletas e análise de amostras do contrapeso usado nas embarcações. O deslastro não mais poderá ser feito à noite ou em águas rasas nem a menos de 200 milhas náuticas da terra, e sempre a uma profundidade mínima de 200 metros. Apenas em situações críticas de navegação poderá ser feito em até 50 milhas náuticas do local da atracação.

Lastro”, é qualquer volume líquido ou sólido acondicionado nos tanques de um navio para assegurar sua estabilidade e capacidade de flutuação. Todo navia precisa de lastro. Quando um navio de carga ou de turismo navega descarregado, ou com a sua capacidade abaixo da tonelagem natural, precisa do lastro para manter-se estável, para garantir as condições ideais de flutuabilidade e a eficiência do leme e para manter abaixo do espelho d’-água as hélices de impulsão.Se não for assim, corre o risco de adernar ou de se ver partido ao meio pelos ventos, pelas intempéries, pela força do mar. Toda a carga e a tripulação podem ficar à deriva e as consequências desastrosas são previsíveis. Na navegação mercante o lastro é tirado do próprio mar. Para que a nave tenha estabilidade, seus tanques são completados com água do mar, das baías e estuários de onde a embarcação suspende(zarpa) ou onde efetivamente atraca. A isso se dá o nome de “água de lastro”. Se um navio desses parte do Brasil com a sua tonelagem incompleta, precisa do lastro para seguir adiante. Enche os seus tanques com as nossas águas e zarpa rumo ao seu destino. Nesse trajeto, como consome combustível e água, vai baixando o calado bruto, ficando mais leve e mais suscetível à raiva dos ventos e dos oceanos. A meio caminho, ou já no destino, quando completa a carga, ou reabastece, e sua tonelagem se aproxima do ideal, livra-se da água de lastro que levou daqui e a deixa no porto onde atracar para reabastecer ou completar a carga. Se faz o caminho inverso, isto é, se levanta ferros do estrangeiro, à meia-carga, e vem reabastecer ou completar a tonelagem aqui, despeja nas nossas águas o lastro que trouxe do porto estranho. Assim, de forma silenciosa e imprevisível, vão cambiando a vida de um mar para outro, espalhando misérias e destruindo, na calada dos portos, toda a fauna marinha que encontram pelo caminho. Quando uma água de lastro é tirada daqui e despejada noutro canto, ou tirada do estrangeiro e jogada aqui, deixa no novo porto toda a sorte de vida, micro-organismos, bactérias e imundícies que trouxe do mar de onde veio. Entre esses, agentes tóxicos, dejetos humanos e micro-organismos patogênicos. A água de lastro pode abrigar no interior dos tanques desde organismos vivos milimétricos, invisíveis a olho desarmado, até peixes de 30 centímetros. Em seu estágio larval ou planctônico, esses organismos microscópicos habitam a superfície das águas e se proliferam sem controle num novo ambiente marinho. Dentre as espécies mais suscetíveis de serem engolidas na operação de lastro estão as anêmonas, as cracas, os caranguejos, os caracóis, os mexilhões e os ouriços-do-mar, assim como agentes patogênicos como o vibrião da cólera(vibrio colerae), letal para a saúde humana. Esse escambo clandestino de vida natural está destruindo os mares, rios e oceanos. Pior: não há solução à vista! O comércio marítimo é necessário e irreversível, não há tecnologia disponível para substituir a água de lastro nem como evitar um desastre ecológico que vem, aos poucos, anunciando a sua força. Estudos do Prof. Ariel Scheffer da Silva, Biólogo do Instituto Ecoplan, mostram que os navios mercantes se ocupam de mais de 80% das cargas do comércio mundial. Segundo diz, um cargueiro com capacidade para 200.000 toneladas pode precisar de 60.000 toneladas de água de lastro. A International Maritime Organization(IMO), um organismo especializado da ONU, estima que em 1939 cerca de 500 espécies exóticas foram introduzidas em ecossistemas espalhados ao redor do planeta. Entre 1980 e 1998, essa contabilidade subiu para 2.214 espécies. A IMO também diz que 12 bilhões de toneladas de água de lastro são transportadas anualmente pelo mundo, e que cerca de 4.500 novas espécies são cambiadas pra lá e pra cá nesse comboio macabro. Scheffer diz que a cada 9 semanas uma nova espécie marinha exótica invade um ambiente em algum lugar do globo, o que as torna uma das quatro maiores ameaças aos oceanos e mares. Essa troca inevitável de ambientes marinhos causou e causa diariamente prejuízos financeiros e naturais dificilmente contabilizados com exatidão. Esses novos seres invadem diariamente o nosso quintal de água e alteram para pior um equilíbrio ecológico já em frangalhos. Isso se dá porque essas espécies, tiradas do seu habitat, livram-se, pelas mãos dos homens, dos seus predadores naturais e passam a ser, no novo ambiente, elas próprias um outro tipo de predador para as espécies originárias, ou começam a crescer de modo tão descontrolado que se tornam um estorvo econômico, uma ameaça à fauna marinha ou à saúde da população local, seja a que vive da pesca, seja a que consome o pescado. Há exemplos clássicos desse desequilíbrio causado pelos navios cargueiros ou de turismo. Em 2001, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária(ANVISA) detectou que em 71% das amostras de água de lastro de navios de cinco portos do país havia bactérias marinhas, inclusive a presença de bacilos do vibrio colerae, o vírus causador do cólera humana. Esse vírus sobrevive até 26 dias na água salgada, 19 dias na doce e até 12 dias no esgoto. Até onde se sabe, o cólera chegou ao Brasil em 1991, trazida pelas águas de lastro dos navios que partiram do Peru. Até hoje a Índia tenta erradicar de suas águas o vibrião do cólera, um problema que já foi endêmico nas décadas de 70 e 80. O vibrião também chegou a seus portos pela ação dos cargueiros. Nos EUA, a água-viva carnívora já consumiu US$10 milhões do orçamento público. Os Grandes Lagos dos EUA sofrem até hoje com o dreissena polymopha, ou mexilhão-zebra, que infesta mais de 40% das águas americanas e impõe um custo anual de US$138 milhões ao governo com a manutenção de seu equipamento público e controle das espécies aquáticas e terrestres, pois esse tipo de molusco cria suas colônias nos encanamentos hidráulicos e em qualquer tipo de passagem de água. Mais de 40 espécies alienígenas foram identificadas nesses Lagos desde 1960, e cerca de 50 na Baía de São Francisco, desde 1970. Não vai por muito, Guaraqueçaba, no litoral paranaense, sofreu com a maré vermelha, que infestou suas águas e dizimou quase inteiramente a fauna. Os cientistas apostam que o fenômeno foi causado pela água de lastro. O mexilhão dourado(limnoperna fortunei) contaminou as águas brasileiras pelo lastro dos navios vindos da Argentina. Comum nos rios e arroios chineses e no sudeste da Ásia, o mexilhão saiu no lastro dos navios da Bacia do Prata, alcançou o Rio Paraná e foi espalhando destruição a uma velocidade de 240 km por ano. Em 2001 já estava presente na Usina de Itaipu, que perde, em média, US$1 milhão por dia a cada paralisação do sistema, e, em 2002, já era visto nas hidrelétricas de Porto Primavera e Sérgio Motta, em São Paulo. É possível que a contaminação dos rios se tenha dado pela transposição dos barcos de pesca esportiva. Em 2004, chegou à Usina de Barra Bonita.

O que estamos fazendo para contornar o problema?

Economicamente, não é viável imaginar um sistema que permita 100% de esterilização da água de lastro, nem existe, por enquanto, um método que assegure esse nível de pureza. Uma vez que nenhum cargueiro pode trafegar sem lastro, e não há nenhum outro lastro mais à mão que a própria água por onde o navio flutua, o caminho mais curto para a solução do problema está na maneira de tratar a água de lastro antes de despejá-la noutro ecossistema. Utiliza-se, atualmente, um sistema de filtros que impedem a sucção de organismos maiores para dentro dos tanques de lastro, mas a quantidade de água bombeada para completar o lastro contém um nível elevado de matéria orgânica que praticamente anula as vantagens da filtragem. A filtragem não impede o bombeamento de bactérias e vírus ou outras substâncias planctônicas ou larvares. Adota-se, também, a ozonização da água de lastro, mesmo processo de purificação da água potável ou da água industrial, mas o ozônio, além de economicamente inviável, produz substâncias corrosivas quando reage com o cloro da água do mar, além de agredir de maneira importante a salubridade do ambiente de trabalho. Também se recomenda o aquecimento das águas de lastro como forma de extermínio de alguns tipos de bactérias e micro-organismos. Não se sabe, ainda, qual o nível de calor necessário para garantir a eficiência do sistema, mas é evidente que a queima de combustíveis utilizados na geração dessa fonte de calor cria um poluente, e isso é complicador, e não uma solução. Fala-se na eficiência da desoxigenação. O método até pode ser eficiente na eliminação de peixes, larvas e bactérias aeróbicas, mas é de nenhuma valia contra os dinoflagelados, cistos, bactérias anaeróbicas e diversos outros tipos de organismos bentônicos. A eletroionização tem sido utilizada no tratamento da água doce, mas não se tem estudo conclusivo sobre a sua eficiência com água do mar. A supersaturação de gás é uma técnica que pode ser utilizada em conjunto com outras, mas, isoladamente, não tem a utilidade desejada nem é eficiente com certos tipos de organismos vivos. Por esse método, produz-se água de lastro com excesso de gás e, em seguida, estimula-se a redução da pressão com formação de bolhas. Esse processo provoca hemorragia e embolia em certos organismos, mas não tem nenhuma utilidade com vírus, algas, bactérias, protozoários e cistos. Sugere-se, ainda, o tratamento da água de lastro com raios ultravioleta. Embora eficaz com micro-organismos, não funciona com protozoários, fungos e algas. De modo ainda inconclusivo, o choque elétrico tem sido testado em laboratórios com promissora eficiência. Por fim, a cloretação é eficiente com a água doce e até mesmo em grandes volumes de água a bordo de navios, mas estudos indicam que concentrações elevadas de cloro como as que seriam necessárias ao tratamento da água de lastro podem originar substâncias tóxicas. Tudo o que se pode fazer é combinar alguns procedimentos conhecidos que permitem diminuir o risco sem comprometer a viabilidade econômica do transporte marítimo de cargas e pessoas.

Enquanto a pureza ideal da água de lastro não é alcançada antes de ser despejada no mar, outro problema tão sério quanto esse está na maneira como se faz o deslastro, pois o próprio processo de troca da água de lastro cria situações críticas de segurança para a tripulação, para a carga e para a própria embarcação. Alguns métodos têm sido adotados, mas a solução ideal está longe de ser alcançada. O mais eficiente sistema de troca de água de lastro é o que prevê o deslastro em alto mar e a uma profundidade superior a 500 metros. Em condições normais de navegação esse método pode ser seguro para a tripulação, para a carga ou para o navio, mas é inviável dependendo do tipo de embarcação e das condições do tempo. É o mar quem decide o destino dos homens, e não o contrário. Utiliza-se, também, o método sequencial, consistente no deslastreamento total do tanque seguido de lastreamento, mas a complexidade da operação expõe a tripulação a níveis de estresse altos demais para o serviço no mar, além de pôr a embarcação em um momento de total instabilidade, o que pode lhe custar caro. Recomenda-se o transbordamento, o que tem vantagens e desvantagens. Transbordamento é a sucção da água de lastro dos tanques, durante certo tempo, esparramando-a pelo convés da embarcação. A vantagem do método está na diminuição do nível estresse e no aumento do nível de segurança da tripulação, mas não é tão eficaz quanto o deslastreamento sequencial e agrega dois outros senões: os tanques de lastro podem ser submetidos a pressão excessiva durante o bombeamento e expor a tripulação ao contato de organismos tóxicos ou patogênicos pelo espraiamento das águas de lastro às partes superiores do navio. Outro método recomendado para o deslastro é o fluxo contínuo. Consiste na troca do lastro sem esvaziar os tanques por inteiro. Numa espécie de “vasos comunicantes”, enchem-se os tanques com água limpa na proporção de três partes de água limpa para uma de água de lastro, mantendo-se, com isso, a estabilidade da embarcação, e substituindo-se o lastro paulatinamente. Tanto quanto o método sequencial, o de fluxo contínuo tem a desvantagem de expor a tripulação ao contato com a água de lastro que é expelida dos tanques.

Os especialistas concordam que o método brasileiro é, de todos, o mais eficiente e seguro. O Brasil adota o método de diluição para o deslastro. Por esse método, o carregamento da água de lastro começa pelo topo do tanque, mas, ao mesmo tempo, e com a mesma intensidade de vazão, faz-se o deslastreamento pelo fundo, de tal sorte que o nível de água no tanque de lastro seja uniforme e constante. Por esse sistema, os sedimentos orgânicos existentes no fundo do tanque são removidos sem que a embarcação comprometa sua estabilidade. Dentre as vantagens desse método, em relação aos demais, os técnicos apontam a maior eficiência em relação ao transbordamento e menor complexidade que o sequencial, constância no nivelamento do tanque lastreado e regularidade na navegabilidade da embarcação, nenhuma exposição da tripulação a agentes tóxicos ou patogênicos e possibilidade de adoção dos diversos tipos de tratamento do nível de pureza das águas de lastro, simplicidade e economia na construção dos navios e facilidade de manejo entre armadores e operadores portuários.

Daqui por diante, quando você passar pela Ponte Rio-Niterói e vir, fundeados na barra,aqueles cargueiros e cruzeiros de luxo, apinhados de turistas, esperando a praticagem rebocá-los para atracarem no porto, lembre-se que um crime ecológico está sendo cometido por dinheiro, e na sua cara. Se você permite um crime, podendo evitá-lo, a culpa não é apenas daquele que delinque. Talvez agora você alcance a profundidade daquele verso de Fernando Pessoa, que eu fiz questão de botar no início deste texto: “Oh,mar salgado! Quanto de teu sal são lágrimas de Portugal…”.

Se você não entendeu, problema seu!

 

 

 

José Geraldo da Fonseca

 

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1.Sobre “água de lastro”, consulte:

  • ARAGUAIA,Mariana.Água de lastro e suas ameaças em potencial.

Jose Geraldo da Fonseca

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