O burro Benjamin e a indústria do medo

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Já era de noitinha quando o sr. Jones chegou à Granja do Solar, tão bêbado que mal parava em pé. Com a lanterna balançando de um lado para outro, atravessou o pátio, tirou as botas e jogou-se na cama. Assim que as luzes se apagaram, os animais correram para o galpão da granja. Durante o dia, correra o boato de que o velho Major, um porco tantas vezes premiado em várias exposições, tivera um sonho muito esquisito e desejava contá-lo aos colegas. Depois que todos se ajeitaram na palha, o velho porco pigarreou, limpou bem a garganta, e antes de contar o sonho propriamente dito falou da miudeza de suas vidas, da luta insana no arado e na tração, dos maus-tratos dos homens e do cutelo que os esperava no fim do ano, especialmente às galinhas, aos porcos e às ovelhas. Três dias depois dessa preleção o velho Major morreu, mas tinha plantado nas ideias de todos eles a semente de uma revolução. Dentre os animais atentos à falação do Major estava o burro Benjamin, um quadrúpede circunspecto, de pavio curto, econômico nas falas, mas muito respeitado. Quando lhe perguntavam o que achava disso e daquilo, dizia que Deus lhe dera as moscas e um rabo para espantar as moscas, mas seria mais do seu agrado que não tivesse as moscas nem o rabo.

Assim como nos casamentos, toda relação entre patrão e empregado tem duas fases: a do “meu bem” e a dos “meus bens”. Na fase do “meu bem” ninguém tem defeitos; na fase dos “meus bens” ninguém tem virtudes.

Quase todo dia a Justiça do Trabalho julga casos em que o policial civil ou militar, para ganhar mais alguns caraminguás e reforçar o orçamento doméstico, faz bico de segurança na iniciativa privada durante as folgas da corporação. De modo geral, executam esses serviços pelas mãos de um terceiro, também policial, quase sempre um oficial de patente superior à dos prestadores do serviço.

Há uma lógica perversa nesse rentável comércio do medo. É simples de entender. O Estado não dá ao particular a segurança de que ele precisa para viver a sua vida, criar os filhos, tocar o seu negócio, e pela qual já paga impostos extorsivos. A malandragem sabe disso. Os oficiais de polícia sabem que os malandros sabem que o Estado é um Midas ao avesso, e transforma ouro em latão, e que os empresários estão dispostos a pagar por aquilo que o Estado não faz. Com esse script na cabeça, montam pequenas arapucas que o Direito Empresarial chama de “sociedades empresárias”, inscrevem o negócio no nome da mulher, de um amigo, de um defunto, e vendem essa segurança particular àqueles comerciantes e empresários assustados com a onda de violência e com a ação das milícias, que são, como todo mundo sabe, formadas por policiais arregimentados nas fileiras do tráfico e da bandidagem.

Por uma razão qualquer, essa relação privada desanda e o policial civil ou militar vai à Justiça do Trabalho pedir o reconhecimento do vínculo de emprego e as verbas a que julga ter direito pela terminação do contrato de trabalho.

¿Esse policial, que já é pago pelo Erário para dar segurança ao cidadão, tem vínculo de emprego com esse comerciante pelo fato de lhe prestar segurança privada nas folgas da corporação?

¿Pode o policial negligenciar sua função pública de prestar segurança e se beneficiar justamente da ineficácia do aparato repressivo do Estado que ele próprio representa para ganhar dinheiro à custa do medo e da insegurança do cidadão comum?

Sobre isso, a magistratura do trabalho não tem consenso. A maioria dos juízes entende que o pedido é juridicamente impossível porque o policial não pode, ao mesmo tempo, receber do Estado e do particular pelo mesmo serviço.

A Lei Estadual nº 2.216/94 permite o trabalho de segurança particular por policiais civis e militares se houver consentimento prévio dos comandantes da unidade policial militar ou civil à qual o policial se liga. Essa lei, conhecida como “lei do bico”, não muda a CLT. Não é a autorização do comandante do batalhão que vai legitimar a prestação do serviço. Tenha ou não havido autorização do comando da unidade, há um fato jurídico que precisa ser examinado pelo juiz: um policial, civil ou militar, prestou uma atividade privada de segurança, nos seus dias de folga, e agora quer responsabilizar o tomador de seus serviços por algum direito que julga ter.

Para a lei trabalhista, toda relação de emprego pressupõe um contrato de trabalho. Não há contrato de trabalho onde não houver relação de emprego. Não é possível distinguir onde há e onde não há contrato de trabalho sem examinar os requisitos dos arts.2º e 3º da CLT, que definem empregador e empregado. Empregador é quem assume os riscos da atividade econômica, admite, assalaria e dirige a prestação pessoal dos serviços. Empregado é a pessoa física que presta serviços de natureza não-eventual ao empregador, sob a dependência deste e mediante salário.

Toda pessoa física que presta serviços a alguém nas condições previstas na CLT, é empregado. Negada a prestação do trabalho, incumbe ao sedizente empregado o ônus de provar que trabalhou sob subordinação jurídica para poder receber aquilo a que julga com direito. Admitida a prestação do trabalho, cabe ao suposto patrão provar que a relação não era de emprego.

Para mim, se estiverem presentes os requisitos dos arts.2º e 3º da CLT, o policial civil ou militar que presta serviços de segurança privada, nas folgas da corporação, é empregado daquele que toma os seus serviços e paga por eles, pouco importando se a prestação do serviço foi ou não autorizada pelo comando da unidade policial.

Assim como não há lei que proíba um empregado civil trabalhar para outro patrão nas folgas do seu primeiro emprego, não há lei que proíba o policial civil ou militar trabalhar para quem quer que seja nas folgas da corporação. Sendo certo que a lei exige para a configuração do contrato de trabalho a pessoalidade, isto é, que o empregado preste ele próprio os serviços, cabe ao tomador desses serviços provar que não havia essa tal pessoalidade, que o policial era agenciado por um terceiro e podia ser livremente substituído na função por outro policial sem o consentimento de quem paga por eles. Se o tomador não provar que o policial podia ser substituído por qualquer outra pessoa na execução desses serviços haverá vínculo de emprego porque estarão demonstradas a subordinação jurídica, a pessoalidade, a habitualidade e a onerosidade, pois não é crível que o policial trabalhe de graça ou por simples compromisso cívico. É da essência da natureza tuitiva(protetiva) do Direito do Trabalho presumir em prol do trabalhador que toda atividade remunerada decorre, necessariamente, de uma relação jurídica de subordinação, típica de um contrato de trabalho.

Assim como o burro Benjamin, Deus me deu o poder de julgar e policiais fazendo bico para cobrir o rombo no orçamento doméstico, mas seria bem mais do meu agrado que eu não tivesse nem um nem outro.

 

A fábula com a qual inicio este texto é um trecho do romance A Revolução dos Bichos, de George Orwell. Foi publicado em 17 de agosto de 1945 e é uma sátira à política stalinista que, segundo Orwell, teria traído os princípios da Revolução Russa de 1917. “George Orwell” é o pseudônimo do escritor e jornalista inglês Eric Arthur Blair, nascido em Motihari, Índia, em 25 de Junho de 1903, e falecido em Londres, em 21 de Janeiro de 1950. Orwell alistou-se como voluntário no Partido Operário de Unificação Marxista, milícia de tendência trotskista, e lutou na Guerra Civil Espanhola contra Francisco Franco e seus aliados Mussolini e Hitler. Foi ferido no pescoço e morreu em Londres, aos 46 anos, vítima de tuberculose. Cópia gratuita de A Revolução dos Bichos pode ser obtida em http://virtualbooks.terra.com.br/freebook/infantis/a_revolucao_dos_bichos.htm

Jose Geraldo da Fonseca

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