Alencar Frederico
É advogado, mestrando em Direito pela Universidade Metodista de Piracicaba, especialista em Direito Processual Civil e em Direito Tributário pela Faculdade de Direito de Itu, consultor, parecerista, autor de diversas obras jurídicas, articulista de revistas especializadas nacionais e estrangeiras, membro honorário da Academia Brasileira de Direito Processual Civil, membro do Núcleo de Pesquisas Jurídicas da OAB subsecção Campinas/SP, e membro do Conselho Editorial da Millennium Editora.
Resumo. Este artigo discorre sobre o não cabimento da prisão civil do devedor fiduciário no ordenamento jurídico brasileiro, analisando, a legislação pátria, a doutrina e os entendimentos dos Tribunais.
Sumário.
Palavras-chave.
Prisão civil – devedor – credor – fiduciário – depositário infiel.
1. Introdução.
A matéria é polêmica e já despertou acirrada discussão no campo doutrinário e jurisprudencial, onde, inclusive, ainda não está pacificada. Entretanto, na esteira da orientação do Superior Tribunal de Justiça, já há entendimento consolidado sobre a questão.
1.1 Legislação.
CPC, Art. 904 – Julgada procedente a ação, ordenará o juiz a expedição de mandado para a entrega, em 24 (vinte e quatro) horas, da coisa ou do equivalente em dinheiro.
Parágrafo único – Não sendo cumprido o mandado, o juiz decretará a prisão do depositário infiel.
Decreto-Lei 911/69. Art. 4º – Se o bem alienado fiduciariamente não for encontrado ou não se achar na posse do devedor, o credor poderá requerer a conversão do pedido de busca e apreensão, nos mesmos autos, em ação de depósito, na forma prevista no Capítulo II, do Título I, do Livro IV, do Código de Processo Civil. (Redação dada pela Lei nº 6.071, de 03.07.1974).
2. Nosso desenvolvimento.
Em que pese o respeito pelo douto entendimento contrário adotado por muitos, a prisão civil de que cogita a espécie não deve prosperar porque é flagrantemente inconstitucional, na medida em que afronta uma das principais garantias individuais do ser humano – sua liberdade.
Pela Constituição da República, a prisão civil seria admissível nos casos de inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentar e no de depositário infiel (art. 5º, inciso LXVII).
No entanto, com a ratificação pelo Brasil do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos em 06 de julho de 1992, e do Pacto de San José da Costa Rica em 06 de novembro do mesmo ano, é vedada a prisão por dívidas, a não ser aquela decretada em virtude do inadimplemento voluntário e inescusável de alimentos.
Foram recepcionados tais acordos pela CR através do seu permissivo legal (parágrafos 1º e 2º do artigo 5º), a partir de então ficou (ao meu modesto entendimento) expressamente proibida a custódia por descumprimento de "obrigação contratual".
3. Algumas observações:
O decreto-lei n. 911/69, regula a relação jurídica nos contratos de alienação fiduciária, estabelecendo, também, procedimento de índole civil em ação de busca e apreensão, na hipótese de inadimplemento da obrigação pelo devedor. Também, há possibilidade de prisão do devedor fiduciário no caso de incidir na condição de depositário infiel, em face do perecimento ou desaparecimento da coisa, por sua culpa.
O Ministro Marco Aurélio externou entendimento a respeito da inconstitucionalidade da prisão do devedor fiduciário, quando na condição de depositário infiel, por equiparação desse dispositivo legal.
"Prisão Civil – A regra constitucional é no sentido de não haver prisão civil por dívida. As exceções, compreendidas em preceito estrito e exaustivo, correm à conta do inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e da figura do depositário infiel – inc. LXVII do art. 5º da CR. Supremacia da realidade, da organicidade do Direito e glosa do aspecto formal, no que o legislador ordinário, no campo da ficção jurídica, emprestou a certos devedores inadimplentes a qualificação, de todo imprópria, de depositário infiel”. (STF, HC 74.383-8-MG).
O fato de o Brasil haver subscrito o Pacto de São José da Costa Rica, situado no mesmo patamar da legislação ordinária, resultou na derrogação desta no que extrapolava a hipótese de prisão civil por inadimplemento de prestação alimentícia.
E mais, partindo da essência do decreto-lei, tomando-se em consideração as normas constitucionais vigentes àquela época, conclui-se que o Decreto-Lei 911/69 é, a toda evidência, eivado de inconstitucionalidade desde a sua expedição, por afrontar o texto do art. 55 da Constituição da República vigente àquela época.
Vejamos, in verbis:
CR/69, Art. 55 – O Presidente da República, em casos de urgência ou de interesse público relevante, e desde que não haja aumento de despesa, poderá expedir decretos-leis sobre as seguintes matérias:
I – segurança nacional;
II – finanças públicas, inclusive normas tributárias; e
III – criação de cargos públicos e fixação de vencimentos.
§ 1º – Publicado o texto, que terá vigência imediata, o decreto-lei será submetido pelo Presidente da República ao Congresso Nacional, que o aprovará ou rejeitará, dentro de sessenta dias a contar do seu recebimento, não podendo emendá-lo; se, nesse prazo, não houver deliberação, aplicar-se-á o disposto no § 3º do art. 51.
§ 2º – A rejeição do decreto-lei não implicará a nulidade dos atos praticados durante a sua vigência.
Nota-se que como decreto-lei, estava sujeito às disposições restritas do art. 55 da CR.
O decreto-lei 911/69 não dispõe a respeito de nenhuma das matérias susceptíveis à referida espécie do dispositivo: I – segurança nacional; II – finanças públicas, inclusive normas tributárias; e III – criação de cargos públicos e fixação de vencimentos.
Nota-se também, que o decreto-lei não versa a respeito de interesse público relevante, tampouco era caso de urgência.
Ressalta-se que a manutenção do ato inconstitucional, no decorrer do tempo, não redunda na sua legitimação, tampouco na sua constitucionalização.
A atual Constituição da República, em nenhum dos seus dispositivos, outorga validade ao decreto-lei ou legitima atos legislativos pretéritos, originariamente despidos de constitucionalidade ou legalidade.
Assim, seja em consideração a Constituição da República (de 1969), seja observando pela óptica da Constituição da República atual, o decreto-lei 911/69 padece de inconstitucionalidade.
No primeiro caso, é hipótese de inconstitucionalidade originária, pois o decreto-lei foi expedido sem a observância de norma cogente da CR vigente àquela época, que dispunha a respeito das matérias sujeitas a processo legislativo originário do Poder Executivo por meio de decreto-lei.
No segundo caso, em face da evolução dos direitos individuais, inserta esta evolução nos preceitos constitucionais da CR atual, não houve receptividade do decreto-lei 911/69.
Vejamos agora algumas notas sobre o Pacto Internacional de San Jose e do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos de Viena.
Para que se tenha uma ordem jurídica democrática se faz necessário à efetivação dos direitos constitucionalmente proclamados. Deste modo, um dos pilares sobre os quais se assenta o Estado brasileiro é a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III da CR).
Como sabemos a Constituição da República ao enumerar os direitos fundamentais não apeteceu a exaustão, por isso, além dos direitos explicitamente reconhecidos, admite existirem outros (implicitamente reconhecidos), daí a previsão no parágrafo 2º do artigo 5º – Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.
Desta forma, a inconstitucionalidade da prisão do devedor fiduciário vem ao direito interno através do Direito Internacional, mais precisamente, do sistema internacional de proteção dos direitos humanos.
Salienta-se, inicialmente, que o conteúdo básico dos direitos fundamentais da pessoa humana e seu caráter universal são realidades hoje assentadas, sobretudo após a Conferencia da ONU sobre o tema, realizada em Viena, em junho de 1993. Uma ordem jurídica que aspire a justiça só pode ser construída com incorporação daqueles direitos sistematizados e expandidos a partir da Declaração dos Direitos Humanos da ONU, de 1948. Tal incorporação é feita pelo direito interno dos Estados soberanos, basicamente, por proclamações constitucionais e por adesão a pactos internacionais.
O Brasil é signatário dos principais pactos internacionais sobre direitos humanos, inclusive o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, adotado na legislação interna por força do dec. 591, de 06 de julho de 1992, e a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de San Jose da Costa Rica) à qual aderiu por força do dec. 678, de 06 de novembro de 1992.
Observa-se que os pactos que o Brasil ratifica passam a vigorar como lei interna.
E mais, a norma internacional tem sua forma própria de revogação, a denúncia. Só pode ser alterada por outra norma de categoria igual ou superior, internacional, e não por lei interna. É o que tem sustentado o Juiz Antonio Carlos Malheiros, em diversos votos, com o apoio da doutrina de Haroldo Valladão e do Min. Philadelpho Azevedo, para sustentar a inconstitucionalidade da prisão de depositário de bem por força do que dispõe a Convenção Americana de Direitos Humanos (1.º TACivSP, HC 674.380-2, j. 14/02/1996).
Dispõe o Pacto de San Jose da Costa Rica, em seu art. 7.º, 7, in verbis: “Ninguém será detido por dividas. Este princípio não limita os mandados de autoridade judiciária competente expedidos em virtude de inadimplemento de obrigação alimentar”.
A Convenção Americana contempla uma única exceção de prisão civil relacionada com a obrigação alimentícia.
No mesmo sentido dispõe o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos em seu art. 11, in verbis: “Ninguém poderá ser preso apenas por não poder cumprir com uma obrigação contratual”.
Ressalta-se que ambos os pactos se aplicam ao caso de depósito contratual ou voluntário.
A prisão civil visa justamente que o individuo cumpra a obrigação contratual.
Daí sua inconstitucionalidade, pela incompatibilidade com a regra da Convenção Americana de Direitos Humanos e notória ofensa ao Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos.
4. Finalizamos.
Assim, estas linhas ficam dirigidas aos colegas (estudantes) para não se fecharem a dogmas e a argumentos pacóvios, esquecendo-se de questões importantes e necessárias, como a inconstitucionalidade da prisão civil do devedor fiduciário.
Nosso cordial Vale.
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