A relevância do estudo acerca da Ciência do Direito e da Dogmática Jurídica tem um caráter ímpar perante a doutrina, em virtude das divergências existentes sobre determinados aspectos, que será exposto no decorrer deste trabalho.
A Dogmática Jurídica e a Ciência do Direito possuem o mesmo objeto de estudo, ou seja, o Direito Positivo, mas apesar dessa coincidência entre ambas, elas não se confundem, apesar dessa opinião não ser unânime. Diante disso, é necessário analisar o significado da Ciência do Direito e da Dogmática Jurídica, de forma simplificada, para que seja possível dirimir qualquer tipo de dúvida sobre o assunto.
Importante transcrever a opinião de Japiassu sobre o tema em questão, afirmando que “a ciência nem possa ser definida. Em geral, é mais conceituada do que propriamente definida” (1975, p. 09).
Isso ocorre porque para conceituar é necessário que um determinado problema seja formulado, bem como também é preciso demonstrar como isso ocorreu.
Mas, apesar dessas dificuldades, inúmeros são os autores que apresentam a definição de ciência.
Sobre o assunto, Japiassu (1975, p. 09) prossegue asseverando que “a verdadeira ciência seria um conhecimento independente dos sistemas sociais e econômicos, Seria um conhecimento que, baseando-se no modelo fornecido pela física, se impõe como uma espécie de ideal absoluto”.
Dessume-se que não há uma definição certa, objetiva, de ciência. O que podemos afirmar é que a ciência pode ser considerada um método de procura do saber, como forma de interpretação da realidade, bem como também a busca de um conhecimento teórico.
Afirma-se ainda que não há uma ciência neutra, pura, pois o cientista não consegue, de forma absoluta, durante um investigação, manter-se sem qualquer influência, imune à sua subjetividade pessoal.
Hodiernamente, a epistemologia reconhece que a ciência não existe mais, existindo apenas “as ciências”, melhor dizendo, práticas científicas.
Seria hipocrisia acreditar que o cientista, como ser humano que é, fosse dotado, absolutamente, de objetividade.
Através de alguns elementos epistemológicos, é possível entender mais facilmente a processualidade da ciência, conforme os ensinamentos de Hilton Japiassu, (1975, p. 26-27):
Considerada a ciência com sendo histórica, a verdade científica também passa a ser um conceito histórico; sendo um produto humano, a ciência participa das vicissitudes da ação social; para definir o que é científico não há utilização de parâmetros ou critérios prévios que servem de medida absoluta para qualquer atividade científica, utiliza-se o ponto de vista próprio direcionado ao sujeito epistêmico; teoria sem erro é teoria dogmática, assim o erro tem seu lado positivo, sendo essencial sua existência na formação de uma teoria, a objetivação procede de uma eliminação de erros subjetivos; o critério mais seguro de objetividade é a disposição crítica do cientista, pois a formulação de um critério absoluto de verdade é impossível. A atividade científica é baseada no pluralismo das concepções, e não numa concepção-modelo, parâmetro universal de objetividade.
A ciência do direito é a ciência stricto sensu. Para defini-la, será utilizado o conceito de ciência, do ponto de vista objetivo e subjetivo. Assim, objetivamente, é o conjunto de conhecimento, logicamente encadeados, para formar um sistema coerente, com pretensão de verdade. Subjetivamente, é o conhecimento de certas coisas por suas causas e leis. Daí, a ciência do direito define-se como sendo a investigação metódica e racional do fenômeno jurídico e a sistematização dos conhecimentos resultantes.
A ciência do direito é conhecimento e não constituição do direito. Mas, a jurisprudência tradicional tem opinião dominante de que a ciência jurídica pode e deve elaborar o Direito.
Dentro desse aspecto, duas correntes doutrinárias revelam visões diferentes sobre a realidade do objeto jurídico: a positivista kelseniana e a egológica de Cossio.
Hans Kelsen, em sua obra Teoria Pura do Direito (1999, p. 79) afirma ser “a norma jurídica o real objeto do direito, ficando a conduta humana com um caráter de pressuposto material da norma, apenas configurando objeto de estudo da ciência jurídica quando constitui relação jurídica previamente prevista em norma.”
Na concepção de Carlos Cossio (1964, p. 63) entende-se que:
(…) a ciência jurídica tem por escopo, e por conseqüente objeto, o estudo da conduta humana em sua dimensão social, sendo a norma jurídica um meio para a realização de tal estudo. Considerado o Direito um objeto cultural egológico justamente por possuir em sua essência a conduta humana.
Analisando as teorias expostas, e, tomando como verdadeira a teoria pura do direito, denota-se que o Direito tem um significado estrito às normas: direito-norma, relevando ao segundo plano a conduta pela norma regulada. Concedendo veracidade à teoria egológica, chega-se a uma posição de que o direito está estritamente ligado à opção humana de escolha de seu comportamento frente situações diversas que a ele se apresentam, seria um direito-faculdade.
Para a teoria pura do direito, o que caracteriza a ciência do Direito é o seu conteúdo. Não admitindo o sincretismo metodológico, a saber, a confusão entre as outras ciências, identifica o seu objeto, por ser ela independente. Kelsen não nega a conexão entre as outras ciências, mas orienta no sentido de que para um estudo científico do Direito, é necessário circunscrever o objeto, saneando tudo o que esteja compreendido neste objeto específico.
Cumpre ressaltar o problema da cientificidade do Direito. Em geral, entende-se por ciência do direito, como sendo um sistema de conhecimentos sobre a realidade jurídica, ou seja, uma atuação controlada de acordo com valores e princípios específicos, e que se distinguiria por seu método e por seu objeto, vista como uma atividade sistemática de interpretação normativa, visando uma aplicação direta a um caso-concreto. Seria, portanto, a ciência do direito, uma ciência imperativo-normativa. Surge então uma questão a saber: pode uma ciência ser normativa?
Grande parte dos teóricos rejeita tal possibilidade, pois ciência, para assim ser considerada, trata sempre de enunciados que constatam e informam uma realidade.. sendo enunciados descritivos, enunciados do “ser”.
Kelsen, entretanto, mesmo defendendo o caráter do “dever-ser” do direito, afirma-o como ciência, pois, diz ele, quando se fala em ciência normativa não se quer contrapor a normatividade à descrição, e sim à explicação.
Considerando-se também, o caráter multívoco do termo ciência, passa-se a complicar a determinação da cientificidade ou não do Direito. Entendendo “ciência” como obtenção de conhecimento através das realidades existentes, não há porque se excluir o direito de seu âmbito de abrangência. Por outro lado, se considerarmos a necessidade de um objeto próprio e imutável para que se configura uma ciência, aí já se revelaria um problema do Direito, pois seu objeto, seja ele normas ou condutas, não é apenas por ele estudado, outras ciências também dele se utilizam em suas especulações. Além do que, tanto as normas quanto a conduta humana são dinâmicas, variam no tempo, de acordo com as circunstâncias.
A respeito da cientificidade do direito, analisando a questão, Luiz Fernando Coelho (1997, p. 03) conclui que o saber jurídico não tem um caráter científico, afirma que “em verdade constitui uma tecnologia a serviço dos operadores do direito; e assim, a chamada ciência do direito consiste numa retórica destinada a persuadir alguém a respeito de uma verdade que é sempre subjetiva”.
Indeterminações afastadas, percebe-se a dificuldade de se imputar ao direito um caráter de cientificidade, mas não se exclui a possibilidade de ser ele realmente uma ciência.
O certo é que a expressão “ciência jurídica” é amplamente utilizada pelos autores.
A ciência jurídica realça seu caráter normativo, de onde todo fato social é estruturado normativamente, em que o formalismo centra seu objeto na atividade sistemática de estudar as normas positivas reguladoras do “dever ser” da sociedade em que participa.
Inclusive, Miguel Reale (1998, p. 17) destaca que “a Ciência do Direito tem sido definida como ciência positivada no tempo e no espaço”.
A idéia de Ciência do Direito tem referencial histórico desde os antigos Romanos, onde se fazia presente através da noção de "jurisprudência". Posteriormente, essa noção de jurisprudência romana daria lugar a Dogmática Jurídica, assim denominada, pois, sua proposta seria formular e sistematizar os conceitos jurídicos, tornando o direito positivo um verdadeiro "dogma". A Dogmática Jurídica aceita a norma vigente como ponto de partida inatacável.
No estudo do direito, são disciplinas dogmáticas: direito constitucional, civil, comercial, penal, tributário, processual, previdenciário, trabalhista, etc. As citadas disciplinas são regidas pelo principio da inegabilidade dos pontos de partida (o dogma, a lei). O princípio da legalidade, inscrito na Constituição Federal, é uma premissa desse gênero, posto que obriga o agente do direito a pensar os problemas a partir da lei, conforme à lei, para além da lei, mas nunca contra a lei. Assim, uma disciplina pode ser definida como dogmática na medida em que considera certas premissas como vinculantes para o estudo (ASSIS e POZZOLLI, 2005, p. 22).
Para a dogmática, o sistema de normas é um dado, o ponto de partida de qualquer investigação, que os agentes do direito aceitam e não negam. O sistema de normas constitui uma espécie de limitação, dentro do qual os profissionais de direito podem explorar as diferentes combinações para a determinação operacional de comportamentos jurídicos possíveis. Esta limitação teórica pode conduzir a exageros, havendo quem faça do estudo do direito um conhecimento muito restrito, legalista e cego para a realidade como um fenômeno social.
Este tipo de estudo, fechado e formalista, é implementado na maioria das faculdades de direito. Por isso mesmo, há uma tendência que consiste em identificar a Ciência do Direito com um tipo de produção técnica, destinada apenas a atender às necessidades do profissional (o advogado, o promotor, o juiz, o procurador, o delegado) no desempenho imediato de suas funções. Sob o império dessa premissa, a maioria das faculdades de direito ficam alienadas em relação à condução do processo de construção do próprio direito positivo, posto que não promovem a produção científica nem a atualização dos seus professores. Raras são as faculdades que se preocupam em promover: a) eventos internacionais para divulgação de novas teorias; b) debates sobre os conteúdos de projetos de lei; c) debates sobre outras alternativas ainda não positivadas; d) debates sobre o real alcance e sentido das novas alternativas positivadas; e) publicação de livros e artigos de seus professores e alunos; f) inserção dos professores e alunos nas organizações da sociedade civil, etc (ASSIS e POZZOLLI, 2005, p. 23).
Muitos autores utilizam Dogmática Jurídica como sinônimo do termo Teoria Geral do Direito, enquanto outros preferem distinguir os referidos termos, identificando a Teoria Geral do Direito como exame das estruturas formais e dos conceitos jurídicos fundamentais comuns a todas as ordens jurídico-positivas cabendo a Dogmática descrever, interpretar e sistematizar as normas de uma ordem jurídica vigente.
Enquanto a Teoria Geral do Direito quer estabelecer o objeto comum dos diversos sistemas jurídicos, a ciência jurídica positiva ou a Dogmática Jurídica concentra seus esforços de generalização e de sistematização sobre o que podemos chamar de direito positivo nacional e histórico, isto é, as regras emanadas do poder competente, em espaço e tempo determinados.
Tanto a Teoria Geral do Direito como a Dogmática Jurídica só se ocupam do direito positivo. A Dogmática jurídica consiste na descrição das regras jurídicas em vigor. Seu objeto é a regra positiva considerada como um dado real. Veiculada pelo ensino jurídico, a dogmática dificulta assim, a apreensão da dimensão histórico-crítica, afastando as demais dimensões do direito.
Dessa forma, a dogmática passa a ter a mesma vida do direito, ao passo que se cria uma injustificada antinomia entre teoria e prática jurídica, completamente contrárias entre si, jamais se encontrando.
Para Escola Analítica do Direito, a Dogmática Jurídica, seria a análise da própria linguagem da dogmática.
Os juristas procuraram justificar a epistemologia da Dogmática do Direito adotando o modelo do positivismo jurídico, destacando a exigência de neutralidade axiológica e objetividade do conhecimento científico. Na concepção de Reale ( 1994, p. 34), em sua obra Filosofia do Direito, “o cientista do direito já pressupõe a vigência de regras jurídicas. O jurista, enquanto jurista, não pode dar uma definição do direito, porque, no instante que o faz, já se coloca em momento logicamente anterior a sua própria ciência.”
Em relação à neutralidade axiológica das ciências, Karl Popper difundiu a idéia de que não existe ciência neutra. Para ele, a ciência não é uma descrição isenta pois introduzimos nela valores constantemente.
Fica claro que a Teoria Geral do Direito possui grande proximidade com a Dogmática Jurídica . É de se ressaltar que a Teoria Geral do Direito, em outras épocas já foi prisioneira de dogmas ultrapassados, mas modernamente apresenta uma proposta de visão global do fenômeno jurídico, reconstruindo conceitos e institutos do direito. Assim, ela não deve excluir, por exemplo, a Política, a Sociologia, a Economia, e principalmente a Deontologia e Filosofia, reveladoras da idéia de justiça. Não existe conhecimento isolado, havendo uma interdisciplinariedade do direito e outras ciências. Tal abordagem interdisciplinar entraria em contraste, por exemplo, em relação as propostas de Alf Ross e Hans Kelsen.
Ross compartilhava da idéia que apenas as ciências naturais forneceriam o único modelo de cientificidade do conhecimento. Entendia também que no âmbito de um discurso que pretendesse ser rigorosamente científico as proposições não analíticas deveriam ser verificadas por procedimento empírico. O conhecimento científico, por fim, forneceria uma previsão dos eventos futuros que através de uma verificação empírica poderiam ser verificados ou negados. O comportamento das autoridades jurídicas confirmaria ou não a verdade ou falsidade das proposições teórico-descritivas que constituiriam a linguagem da ciência jurídica, a exemplo de quando uma proposição jurídica é acatada numa sentença judicial, ou seja, quando é efetivamente aplicada pelos tribunais. Sua concepção é evidentemente anti-filosófica.
É de se salientar que a Dogmática não exprime todas as dimensões do Direito, como afirma o positivismo jurídico, não podendo afastar outras abordagens complementares à apreensão de seu ser. Para alcançar uma concepção totalizadora do direito, é necessária a visão da Filosofia e da Sociologia do direito. Se não houver essa complementação, acarretará problemas.
Conforme Vera Regina de Andrade, p. 18:
(…) na auto-imagem da Dogmática Jurídica ela se identifica com a idéia de Ciência do Direito que, tendo por objeto o Direito Positivo vigente em um dado tempo e espaço e por tarefa metódica a construção de um sistema de conceitos elaborados a partir da interpretação do material normativo, segundo procedimentos intelectuais de coerência interno, tem por finalidade ser útil à lide, isto é, à aplicação do Direito. Trata-se de uma ciência de “dever ser”(normativa), sistemática, descritiva, avalorativa (axiologicamente neutra) e prática.
Finalmente, torna-se extremamente necessário encerrar esta pesquisa transcrevendo um trecho da obra de Azevedo, com suas sábias palavras:
Nunca será demais insistir, face à tendência obstinada e insidiosamente contrária tantas vezes e por tantas formas historicamente perceptível no pensamento jurídico, que a Dogmática Jurídica deve atentar para a moldura social em que se realiza, para as necessidades, reclamos e objetivos humanos em função de que precisamente deve cumprir-se sua tarefa. Há que se lutar sem tréguas contra os excessos logicistas que desembocam no formalismo jurídico, que pode ser caro aos juristas formados em sua viciosa atmosfera, mas desservem o povo – destinatário final desse trabalho – que não compreende, não se interessa e não leva desse sutil exercício intelectual que teima em ignorá-lo (1989,p. 15).
Conclui-se que há divergências sobre o assunto, sendo a Ciência do Direito difícil de ser definida e limitada, em razão dos termos Ciência e Direito apresentarem muita equivocidade, mas é possível afirmar que o Direito é ciência. A Dogmática Jurídica é espécie do gênero Ciência do Direito, tendo na atividade interpretativa seu objeto por excelência, realizando esta prática através de paradigmas teóricos, com o fim precípuo da segurança jurídica.
BIBLIOGRAFIA
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ASSIS, Olney Queiroz; POZZOLI, Lafayette. Pessoa Portadora de Deficiência: Direitos e Garantias.2. ed., São Paulo: Editora Damásio de Jesus. 2005.
AZEVEDO. Plauto Faraco de. Crítica à Dogmática e Hermenêutica Jurídica. Porto Alegre: Sérgio Fabris, 1989.
COELHO, Luiz Fernando. A Teoria Crítica do Direito na Pós-Modernidade. Comunicação apresentada ao XVIII Congresso Mundial da Associação de Filosofia do Direito e de Filosofia Social, La Plata, Buenos Aires.
FERRAZ Júnior, Tércio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito: técnica, decisão, dominação. 2. ed., São Paulo: Atlas, 1994.
JAPIASSU, Hilton. O mito da neutralidade científica. Rio de Janeiro: Imago Editora Ltda, 1975.
REALE, Miguel. Filosofia do Direito. São Paulo: Saraiva ,1994.
____________. Lições Preliminares do Direito. São Paulo : Saraiva, 1998.
[1] Mestra em Direito pelo Centro Universitário de Marília – UNIVEM – Marília – SP; especialista em Direito Civil e Processual Civil pela Faculdade de Direito da Alta Paulista – Tupã – SP; professora do Curso de Especialização em Direito Empresarial e pesquisadora da Universidade Estadual de Londrina; advogada.
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