A Responsabilidade Objetiva do Estado na atuação da Polícia Militar

Resumo

O surgimento e a atuação do Estado surgem a partir de um processo de outorga de competência aos representantes, escolhidos, legitimamente, segundo os preceitos do Estado Democrático de Direito. Todavia, a atuação estatal, compreendida em todos os âmbitos do organismo social, é concretizada através dos órgãos públicos e conseqüentemente pelos agentes públicos. Neste contexto, destaque ao instituto da responsabilidade objetiva do Estado. Este instituto vem garantir a isonomia entre os cidadãos, visto que o prejuízo sofrido injustamente por alguém em razão da ação estatal será custeado por toda a coletividade, via de indenização que será paga pelo erário público. Desta forma, o presente trabalho visa analisar a atuação da Polícia Militar no bojo do Estado de Direito e os atributos da responsabilidade civil objetiva.

Palavras-Chaves: Atuação Estatal; Responsabilidade Civil; Polícia Militar; Estado Democrático de Direito.

 

Abstract

The appearance and performance of the state emerge from a process of granting powers to the representatives, chosen, legitimately, according to the precepts of a democratic state. However, the state action, understood in all areas of the social organism, is achieved through the public and consequently by state officials. In this context, the Office highlighted the rule of strict liability. This institute will ensure the equality between citizens, since the injury suffered by someone unfairly because of state action would be borne by the whole community, as a compensation to be paid for by public money. Thus, this study aims to analyze the actions of military police in the wake of the rule of law and the attributes of strict liability.

Keywords: Acting State; Liability; Military Police, Democratic State

 

1. Introdução

O surgimento do Estado remonta à formação dos primeiros grupamentos humanos, unidos em razão de diversas necessidades. Entretanto, para a criação dessa entidade abstrata, a cada indivíduo foi imposto que cedesse parte de sua liberdade individual, de forma a que o Estado passasse a gerenciar os conflitos e cuidar da proteção da coletividade.

A atuação do Estado passa pela outorga de competência aos representantes escolhidos pelo grupo social estabelecido. Dessa escolha é que nasce, segundo Jorge César de Assis

o conceito embrionário de autoridade, significando, em sua forma elementar, um poder de fiscalização do corpo social, em nome da escolha do Estado, ou seja, uma outorga que se origina do próprio corpo social. A evolução desse conceito deságua no Poder de Polícia (ASSIS, 2007, p. 34)

Aliás, ao se buscar a conceituação de “polícia”, tem-se a seguinte definição:

s.f. A ordem ou segurança pública; o conjunto de leis e disposições que lhe servem de garantia; a parte da Força Pública ou Corporação incumbida de manter essas leis e disposições de boa ordem; civilização; cultura social; cortesia; nome comum a diversos departamentos especializados na defesa do regime político do Estado (polícia política, polícia militar), na fiscalização, inspeção ou profilaxia de certas doenças (polícia sanitária) etc.; s.m. indivíduo pertencente à corporação policial.3

Percebe-se assim a enorme abrangência das missões e atribuições que o Estado possui quando exerce a atividade de polícia, atuando nos mais diversos ramos da sociedade, prevenindo ilícitos, fiscalizando, advertindo, corrigindo, aplicando punições.

Segundo Jorge César de Assis

a atividade policial começou junto com a humanidade. A partir do momento em que o homem resolveu delimitar e cercar uma área, classificando-a como sendo sua propriedade, iniciaram-se aí os conflitos de toda ordem. Se prevalecesse a lei natural, somente os fortes é que se imporiam, ficando reservado aos vencidos o triste destino da humilhação e da servidão. Entretanto, o Estado caracterizado como uma entidade abstrata, com personalidade jurídica, avoca para si a exclusividade de manter a ordem e aplicar a lei, coordenando as relações entre as pessoas de modo a minimizar os desentendimentos (ASSIS, 2007, p. 35).

A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 144 estabelece que a segurança pública é dever do Estado e direito e responsabilidade de todos, devendo ser exercida, entre outras, pelas polícias militares. O policial militar é quem executa a manutenção da ordem pública, representando a vontade do Estado, atuando na prevenção e repressão de infrações. Sua atividade é absolutamente fundamentada na lei, que lhe garante competência para agir.

Os integrantes da Polícia Militar são, na circunscrição de seus Estados, as autoridades policiais militares responsáveis pela segurança pública, caracterizando-se esta autoridade no Comandante-Geral, fracionando-se até o Policial Militar isolado, desenvolvendo sua missão junto à sociedade (ASSIS, 2007, p.50)

Neste sentido, Celso Antonio Bandeira de Mello afirma que:

um dos pilares do moderno Direito Constitucional é, exatamente, a sujeição de todas as pessoas, públicas ou privadas, ao quadro da ordem jurídica, de tal sorte que a lesão aos bens jurídicos de terceiros engendra para o autor do dano a obrigação de repará-lo (MELLO, 2008, p.838)

A Constituição brasileira adota expressamente, como princípio, a chamada “responsabilidade objetiva do Estado”, que estabelece para aquele a obrigatoriedade indenizatória sempre que agente estatal, utilizando-se dessa qualidade, lesar terceiros.

É também na Constituição que se verifica a atribuição à Polícia Militar das funções de manter e restaurar a ordem pública. Assim é que, em inúmeras situações, ter-se-á, na busca do cumprimento das determinações constitucionais, atuação dos agentes públicos militares que acabem lesionando direito de terceiros. Quando não, também possível se torna a confrontação com o abuso por parte dos agentes na condução de suas atividades, o que, igualmente, daria ensejo à possibilidade indenizatória.

O presente estudo busca analisar o tema trazendo à cena a atuação da Polícia Militar, através de seus agentes, como representantes diretos da vontade do Estado. A pergunta que norteará todo o trabalho que ora se apresenta é: qual o liame entre a responsabilização objetiva do Estado por atuação da Polícia Militar e a exclusão da obrigação de reparar os danos causados?

O assunto ganha real dimensão e relevância na medida em que vemos a todo o momento o espocar de manifestações das mais variadas espécies que requerem, para sua ocorrência em níveis viáveis de segurança, o apoio, a vigilância e a atuação da Polícia Militar. Também atinge importância em razão dos inúmeros problemas que tomam de assalto a sociedade contemporânea: roubos em rodovias, rebeliões em estabelecimentos prisionais, violência urbana.

O questionamento assim toma corpo: qual a responsabilidade imputada ao agente militar em atuações suas que venham a prejudicar terceiros? Em que situações de envolvimento da Polícia Militar não estará ela sujeita à responsabilização?

O estudo da responsabilidade, suas características, aplicabilidade e situações de exclusão, especificamente no que toca à situação da Polícia Militar bem de encontro à necessidade de se estabelecer com clareza o limite entre a disposição constitucional que impõe ao Estado o dever de indenizar lesões causadas por agentes seu e as possibilidades de excluir tal obrigação diante de situações específicas.

 

  1. Evolução histórica do instituto da responsabilidade do Estado.

O desenvolvimento histórico do instituto da responsabilidade do Estado pode ser demarcado em fases precisas de interpretação. Na primeira delas constata-se a inexistência da questão, vigendo a irresponsabilidade do Estado como regra. Tal postura firmava-se na crença de que a imposição de responsabilidade pecuniária à Administração consistiria em perigoso obstáculo à consecução de suas atribuições. Assim, poderia o administrado votar-se em pedido indenizatório apenas contra o funcionário público.

Segundo Cahali, a teoria da irresponsabilidade absoluta do Estado firmava-se na crença de que

dentro da concepção política do Estado Absoluto não podia caber a idéia de reparação dos danos causados pelo Poder Público, dado que não se admitia a constituição de direito contra o Estado soberano, que gozava de imunidade total. (…) Resguardava-se assim o Estado legalista, na sua prepotência de não contradição. (…) A teoria da responsabilidade, lembra Cretella Júnior, “prevaleceu na época dos Estados despóticos em que vigorava o princípio incontrastável: o rei não erra (CAHALI, 2007, p. 2008).

Na fase seguinte, em que se aclamou a chamada “teoria civilista”, a dedução da responsabilidade estatal vinculava-se aos dispositivos do Código Civil, envolvendo os atos de prepostos e mandatários.

Nesse momento de evolução do instituto, para que se alcançasse uma responsabilização do Poder Público acabava-se por adotar os princípios da responsabilidade por fato de terceiro. Através dessa interpretação distinguia-se a atuação do Estado em duas vertentes específicas: desempenho de funções essenciais ou necessárias e funções facultativas ou contingentes.

Atuando no cumprimento de suas funções essenciais, tais como a manutenção da ordem jurídica, exerceria o Estado a sua soberania, na qualidade de poder supremo. Nesta situação estaria incólume a qualquer julgamento, e, ainda que restassem prejudiciais aos súditos, seriam insuscetíveis de serem passíveis de indenização. São os denominados ‘atos de império’ do Estado.

Entretanto, na prática do que se convencionou chamar de “atos de gestão”, o Estado quedaria igualado ao particular, havendo aí possibilidade de ter sua responsabilidade civil reconhecida, por atos de seus representantes ou prepostos lesivos aos direitos de terceiros.

Apesar de merecer destaque por apresentar nova visão do princípio da responsabilidade, a teoria civilista restou descartada em razão da insuficiência vertida por seus conceitos. Na concepção do grande administrativista, Hely Lopes Meirelles

pela atual teoria da responsabilidade objetiva, não há mais fundamento para esta sibilina distinção. Todo ato ou omissão do agente administrativo, desde que lesivo e injusto, é reparável pela Fazenda Pública, sem se indagar se provém do jus imperii ou do jus gestionis, uma vez que ambos são formas de atuação administrativa (MEIRELLES, 2005, p. 320)

 

3. Conceito de responsabilidade objetiva e seus requisitos de existência

A responsabilidade civil do Estado pode ser compreendia como a obrigação de proceder à reparação de caráter pecuniário por danos causados a terceiros, em virtude de atuações unilaterais de agentes seus, sejam elas omissivas ou comissivas, legais ou não.

Todos os países, em posição unificada, reconhecem a obrigação estatal de levar a efeito o ressarcimento a quem sua atuação tenha lesado.

O princípio da responsabilidade civil do Estado nunca foi contestado no direito pátrio. É de 1891 a disposição constitucional de que “os funcionários públicos são estritamente responsáveis pelos abusos e omissões em que incorrerem no exercício de seus cargos, assim como pela indulgência ou negligência em não responsabilizarem efetivamente seus subalternos”. Entretanto, é na Carta Magna de 1946 que se pode verificar, sem quaisquer dúvidas, a intenção do legislador, in verbis

Art. 194 As pessoas jurídicas de direito público interno são civilmente responsáveis pelos danos que seus funcionários, nessa qualidade, causem a terceiros.

Parágrafo único: caber-lhes-á a ação regressiva contra os funcionários causadores do dano, quando tiver havido culpa deles.

A Constituição Federal de 1988 ratificou o posicionamento até então adotado, ampliando a abragência da responsabilidade estatal. É no artigo 37, §6º que determina, in verbis:

as pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus funcionários, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.

Segundo Carlos Ari Sudfeld,

o dispositivo preceitua expressamente que o Estado não é irresponsável, devendo, obrigatoriamente, arcar com os prejuízos provocados por sua ação ou inação. Trata-se de exigência do Estado de Direito; seria contraditório o poder Público submeter-se ao Estado de Direito e, ao mesmo tempo, ficar imune ao dever de indenizar toda vez que seus comportamentos atinjam a esfera jurídica de particulares (SUNDFELD, 2006, p. 140)

Não é outro o pensamento de Celso Antonio Bandeira de Mello:

“deveras, a partir do instante em que se reconheceu que todas as pessoas, sejam elas de direito privado, sejam se direito público, encontram-se, por igual, assujeitadas à ordenação jurídica, ter-se-ia que aceitar, a bem da coerência lógica, o dever de umas e outras – sem distinção – responderem pelos comportamentos violadores do direito alheio em que se incorressem. Ademais, como o Estado moderno acolhe, outrossim, o princípio da igualdade de todos perante a lei, forçosamente haver-se-á de aceitar que é injurídico o comportamento estatal que agrave desigualmente a alguém, ao exercer atividades no interesse de todos, sem ressarcir ao lesado (MELLO, 2005, p. 189)

A constituição Federal ampliou de modo considerável a abrangência do conceito de responsabilidade civil do Estado. A visão de alcance da responsabilidade estatal diverge daquela comumente relacionada ao particular. No direito privado a obrigação de indenizar vincula-se à idéia de culpa. A reparação de danos é imposta ao particular sempre que sua atuação culposa seja comprovada na situação de prejuízos sofridos por outrem. Tal posicionamento não encontra guarida no direito público. Nele, a responsabilidade é objetiva, independente da constatação de culpa.

O Estado é obrigado a reparar os danos que cause, quer tenha adido contra o Direito, quer tenha observado rigorosamente as normas jurídicas; em outras palavras: reponde por atos lícitos e ilícitos. A responsabilidade por atos ilícitos deriva de seu dever de submissão à ordem jurídica. Já a responsabilidade por comportamentos lícitos decorre do princípio da igualdade. Pouco importa que o Estado tenha agido rigorosamente dentro dos parâmetros constitucionais e legais. Se causa um prejuízo a alguém, ao aplicar o direito, é porque este é indispensável ao atendimento de certo interesse público; seria contrário à isonomia um indivíduo suportar sozinho o prejuízo gerado no interesse de todos ((SUNDFELD, 2006, p. 155)

A precisão de culpa é relevante apenas para a consideração da possibilidade de interposição de ação regressiva pelo Estado contra agente que, por atuação culposa em sentido amplo, tenha causado dano a terceiro.

Como primeiro requisito para que se configure a responsabilidade civil do Estado tem-se a necessidade da existência de um evento danoso a terceiros, vinculado à atuação de um de seus agentes.

O ensinamento de Yussef Said Cahali preceitua de modo preciso acerca do tema que

no plano da responsabilidade objetiva do direito brasileiro, o dano ressarcível tanto resulta de um ato doloso ou culposo do agente público como, também, de ato que, embora não culposo ou revelador de falta da máquina administrativa ou do serviço, tenha-se caracterizado como injusto para o particular, como lesivo ao seu direito subjetivo (CAHALI, 2007, p. 210)

É comum na atividade administrativa a existência de situações em que o interesse público deva prevalecer em detrimento de interesses individuais.

As características do evento danoso a se reparado são a sua anormalidade e individualidade, pois somente de tais situações é que se constatará a quebra do princípio da isonomia dos encargos sociais. Somente a lesão causada a pessoa ou grupos determinados, enquanto todo o restante da coletividade foi poupado é passível de indenização. Nada mais lógico e ajustado: se a atuação administrativa que está a lesar terceiro será de utilidade para toda a coletividade, atendendo a interesse geral, acertado é que o encargo a ser suportado por terceiro titular do direito lesado seja redistribuído para a generalidade representada pelo Estado através da indenização.

O segundo requisito a ser observado na imputação de responsabilidade ao poder Público é o nexo de causalidade material. Por esta premissa entende-se que o prejuízo causado ao particular deve ter ocorrido em razão de ação ou omissão do Estado. Estabelecido o liame causal, a decorrência do dano à causa da atividade ou omissão da Administração Pública, ou de seus agentes, exsurge daí o dever de indenizar.

Por derradeiro, o terceiro requisito para que se configure o dever de responsabilidade do Estado, necessário se torna a comprovação da qualidade de agente na prática do ato.

Conforme observa Maria Sylvia Zanella di Pietro, é pressuposto da responsabilidade civil

que o dano seja causado com agente das aludidas pessoas jurídicas, o que abrange todas as categorias, de agentes políticos, administrativos ou particulares em colaboração com a Administração, sem interessar o título sob o qual prestam serviços (DI PIETRO, 2000, p. 310).

Themístocles Cavalcanti assinala que

para que a responsabilidade do Estado cubra o ato do funcionário é preciso estabelecer a relação entre o ato e o serviço; em outras palavras, que tenha sido praticado para o serviço ou, pelo menos, durante o serviço; daí a fórmula conhecida – no exercício de suas funções (CAVALCANTI, 1964, p.55).

O que realmente importa para a vinculação da responsabilidade do Poder Público é o fato de que a condição de agente público é que tenha oportunizado a prática do evento danoso à terceiro. O fato de que tenha havido abuso do exercício da função pública não descaracteriza a responsabilidade objetiva da Administração.

 

4. Possibilidades Excludentes da responsabilidade objetiva do Estado.

Embora adote o direito pátrio a teoria da responsabilidade objetiva do Estado, há que se atentar para as possibilidades de ocorrência de dano em situações onde o Estado, embora possa estar envolvido, não responderá pelos prejuízos sofridos por terceiros.

Lúcia Valle Figueiredo disciplina: “se o dano não ocorreria caso a conduta da vítima não tivesse provocado o agravo, não já de se cogitar de responsabilização estatal” (FIGUEIREDO, 2006, p.55). Esta é a primeira hipótese de exclusão da responsabilidade do Estado: culpa exclusiva da vítima. É evidente que não poderá o Estado ser responsabilidade por condutas estranhas à atuação de seus agentes.

A segunda situação em que se constatará a obrigação da obrigação do Estado proceder à reparação de danos são as hipóteses de “força maior”. Ocorrendo fato natural como enchentes, desabamentos, evento absolutamente imprevisível, inevitável e incontrolável, estará o Estado isento da responsabilidade indenizatória.

Outra situação onde se vislumbra a exclusão da responsabilização indenizatória do Estado é a ocorrência de “caso fortuito”, atuação de terceiros estranhos à Administração que venha a causar o evento danoso. Em assim ocorrendo, terá o Estado excluída a obrigatoriedade da reparação do prejuízo havido.

Diante de tais situações, passemos à análise da atuação dos agentes da Polícia Militar como representantes diretos do Estado.

 

5. A atuação da Polícia Militar

Segundo Yussef Said Cahali

“a condição de agente da autoridade pública do policial quando da prática do evento danoso apresenta características especiosas, diversas da situação dos funcionários públicos em geral: o policial identifica-se e impõe-se perante o particular pela farda que ostenta, confia-lhe o Estado o porte de arma de fogo para o seguro desempenho de suas funções, e mesmo nos seus dias de folga está sempre à disposição de seus superiores ou da população para atender a certas emergência (CAHALI, 2007, p. 210)

Esses três aspectos são considerados pela jurisprudência para identificar eventual responsabilidade civil do Estado por danos por ele causados, no pressuposto da prática do ato como tendo sido “em serviço”. Assim é que o fato de portar arma, estar fardado e à disposição contínua para o atendimento das necessidades da sociedade e do Estado perfazem critérios imprescindíveis quando da avaliação da atuação do agente em nome da Administração Pública.

Não é outro o posicionamento da jurisprudência pátria:

ABUSO NA UTILIZAÇÃO DE FORÇA POLICIAL – MORTE DA VÍTIMA – RESPONSABILIDADE OBJETIVA DO ESTADO. Se o policial age de forma desproporcional e abusiva, atirando para matar em vítima que fugiu apenas por medo e que nem cometera ilícito algum, responde o Estado, de forma objetiva, pelo ato precipitado de seu agente, devendo indenização ao pai do “”de cujus”” por danos materiais e morais, cumulados. V.V. EMENTA: Comprovada a culpa exclusiva da vítima, não há responsabilização do Estado com base na teoria da responsabilidade objetiva (TJMG, 7ª. Câmara Cível, processo 1.0000.00.282140-3/000(1), publicado em 24/04/2003).

Desta forma, se policial fardado, mesmo não estando em serviço, atuou na qualidade de agente do Poder Público, matando alguém, o Estado responde pela respectiva indenização; o fato de ter havido, por parte do policial, abuso no exercício da função pública não afasta a responsabilidade objetiva da Administração; pelo contrário, revela até mesmo a existência de culpa subjetiva in eligendo, o que é mais grave.

Como anteriormente explicitado, não é tão somente a atuação do agente que trará em seu bojo a responsabilização do Estado por eventuais danos ocorridos a terceiros. Faz-se necessário, imprescindível mesmo que se reconheça nexo de causalidade entre a ação estatal e o prejuízo sofrido. Melhor: há que se apurar sempre, com parcimônia, caso a caso as características que permeiam o ato para, só então, diante da conclusão da presença dos requisitos necessários, imputar-se ao Estado a obrigação de reparar as lesões causadas.

Ao policial militar cabe a atuação zelosa e comprometida na busca da manutenção da ordem e, principalmente, na prevenção da ocorrência de delitos que a transtornem. A argumentação e a busca de soluções acerca da responsabilidade que envolve o policial militar são complexas e demandam acurado estudo dos casos concretos. Assim é que, dentre as inúmeras situações já elencadas pelo Judiciário em seu acervo jurisprudencial, algumas foram colhidas e trazidas ao presente estudo, a fim de ilustrar a situação da imputação – ou não – da responsabilidade objetiva.

ADMINISTRATIVO. INDENIZAÇÃO. MORTE. DISPARO DE ARMA DE FOGO. POLICIAL MILITAR. RESPONSABILIDADE. AUSÊNCIA DE NEXO DE CAUSALIDADE. RESPONSABILIDADE INEXISTENTE. A responsabilidade civil do Estado, conquanto de natureza objetiva, pode ser excluída quando houver contribuição total da vitima para a causação do dano. Se a vítima abordada por policiais saca de sua arma e aponta contra aqueles, o policial que venha a atirar contra a vítima não responsabiliza nem o Estado e muito menos sua pessoa por eventual indenização. Comprovada a culpa exclusiva da vítima, não há responsabilização do Estado com base na teoria da responsabilidade objetiva (TJMG, 7ª. Câmara Cível, processo 1.0701.05.117127-3/001(1), publicado em 14/11/2008).

Na situação acima exposta verifica-se a não ocorrência da imputação de responsabilidade ao Estado. Ainda que submetido ao princípio da responsabilidade objetiva, não deverá o Estado arcar com a reparação de danos que acabaram ocorrendo em razão da conduta da própria vítima. Considera-se a atuação da vítima como excludente de responsabilização estatal, em virtude da total impossibilidade de que o Estado preveja a ação de todos os indivíduos que compõem a sociedade.

Não é outra a postura adotada pelo Tribunal mineiro diante das duas situações abaixo transcritas:

RESPONSABILIDADE CIVIL. ACIDENTE PROVOCADO POR TERCEIRO. AUSÊNCIA DA POLÍCIA MILITAR. CULPA EXCLUSIVA DA VÍTIMA. AUSÊNCIA DO DEVER DE INDENIZAR. Na análise do caso em concreto, sob a ótica da responsabilidade objetiva, a culpa exclusiva da vítima afasta a obrigação de indenizar do Município. “O risco administrativo não significa que a Administração deva indenizar sempre e em qualquer caso o dano suportado pelo particular; significa, apenas e tão-somente, que a vítima fica dispensada da prova da culpa da Administração, mas esta poderá demonstrar a culpa total ou parcial do lesado no evento danoso, caso em que a Fazenda Pública se eximirá integral ou parcialmente da indenização””. A conselheira que se apresentou sem a companhia da Polícia Militar agiu com culpa exclusiva (TJMG, 1ª. Câmara Cível, processo 1.0479.99.007469-8/001(1), publicado em 03/02/2006).

Entretanto, ao se analisar situação descrita a seguir, percebe-se a diferença de postura do Tribunal de Justiça de Minas Gerais no tocante à responsabilização objetiva do Estado:

AÇÃO DE INDENIZAÇÃO. DANO MORAL. RESPONSABILIDADE OBJETIVA DO ESTADO. AÇÃO DE REPARAÇÃO DE DANOS MORAIS. AGRESSÃO. POLÍCIA MILITAR. DANO MORAL RECONHECIDO. QUANTUM INDENIZATÓRIO. FIXAÇÃO. CRITÉRIOS. RAZOABILIDADE E PROPORCIONALIDADE. A abordagem policial, por si só, não configura ato capaz de ensejar dano moral, mas estrito cumprimento do dever legal, devendo-se punir apenas o excesso ou abuso de poder. O dano causado por policiais militares que, agindo com excesso ou abuso de poder, agridem o pai de um suspeito de autoria de delito, quando de sua perseguição e prisão, causando-lhe lesões corporais, há de ser analisado sob a ótica da teoria objetiva. Inexistindo culpa da vítima apta a atenuar ou ilidir a responsabilidade da Administração, acolhe-se o pedido de composição do dano moral sofrido em decorrência das agressões praticadas pelos Policiais Militares. A agressão desproporcional de Policiais Militares gera dano moral indenizável, uma vez que o ato ofende a integridade psíquica da pessoa, a sua honra, dignidade ou vida privada, repercussão na esfera subjetiva da vítima, causando-lhe sofrimento. A reparação por dano moral deve atender aos critérios da razoabilidade e da proporcionalidade que norteiam o entendimento do magistrado e, ainda, levar em conta a situação do ofendido e a capacidade econômica do ofensor (TJMG, 2ª. Câmara Cível, processo 1.0702.05.203801-6/001(1), publicado em 13/04/2007)

Configura-se indiscutivelmente a obrigação de reparar danos causados, sejam eles materiais ou morais, por parte do Estado, em razão da atuação excessiva de agente seu, policial militar. Vê-se que o fato de o policial ter agido com excesso ou abuso de poder somente agrava a situação do Estado, não importando à discussão o fato de que o Estado possa ou não ter autorizado tal atuação. A responsabilização objetiva é, exatamente, a imposição à máquina estatal de que arque com toda e qualquer atitude de representante seu que prejudique injustamente a terceiros.

Por fim, no derradeiro julgado colhido dentre a farta jurisprudência mineira, pode-se constatar que a Justiça novamente aplica o princípio da responsabilidade objetiva do Estado perante excessos cometidos por seus agentes, impondo a indenização por danos morais sofridos pela vítima do abuso cometido:

ADMINISTRATIVO – CONSTITUCIONAL – AÇÃO DE INDENIZAÇÃO – PROVA CONCLUSIVA DOS EXCESSOS COMETIDOS POR POLICIAIS CONTRA INDIVÍDUO ALGEMADO – RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO – APLICABILIDADE – REDUÇÃO DO VALOR DA INDENIZAÇÃO – NÃO-CABIMENTO – SUCUMBÊNCIA RECÍPROCA – DISTRIBUIÇÃO DO ÔNUS – SENTENÇA PARCIALMENTE REFORMADA. 1 – É objetiva a responsabilidade do Estado pelos excessos praticados pelos policiais militares que, ao se depararem com uma briga entre dois indivíduos embriagados, não souberam conduzir a prisão dos envolvidos como se espera de agentes treinados para tal mister, acabando por agredirem violentamente um dos envolvidos. 2 – Deve ser mantido o valor fixado em primeira instância a título de danos morais quando arbitrado com adequação. 3 – Impõe-se a distribuição dos ônus sucumbenciais quando o pedido é julgado parcialmente procedente. 4 – Recurso parcialmente provido (TJMG, 8ª. Câmara Cível, processo 1.0518.02.032248-4/001(1), publicado em 20/09/2006)

 

6. Conclusão.

Finalizando o presente estudo, alguns apontamentos relevantes acerca de seu conteúdo merecem destaque. No início do trabalho levantou-se questionamento que dirigiu toda a abordagem seguinte: “qual o liame entre a responsabilização objetiva do Estado por atuação da Polícia Militar e a exclusão da obrigação de reparar os danos causados?”.

Diante das considerações até aqui expostas pode-se concluir que tal liame tem definição pautada, indiscutivelmente, na atuação dos agentes estatais, representantes diretos da vontade do Estado, que se utilizam desta condição para causar danos a terceiros.

Percebe-se também que o instituto da responsabilidade objetiva do Estado vem garantir isonomia entre os cidadãos, visto que o prejuízo sofrido injustamente por alguém em razão da ação estatal será custeado por toda a coletividade, via de indenização que será paga pelo erário público.

Também há que se salientar o fato de que a responsabilidade objetiva, embora de grande amplitude, não é absoluta. Há situações excludentes da imputação de responsabilidade que eximirão o Estado da obrigação de reparar danos que terceiro tenha sofrido. Assim é que diante de situações de força maior, de caso fortuito, ou mesmo em hipóteses onde se comprove que a culpa exclusiva da lesão é da vítima prejudicada, estará o Estado imune à responsabilidade objetiva.

Na particular situação dos policiais militares vê-se ainda com mais clareza a complexidade envolvida nos estudos de caso, visto ser a classe militar a responsável por garantir a segurança pública e a harmonia da sociedade. Nessas situações especialíssimas deverá haver, por parte do julgador, cuidado e bom senso ainda maiores, pois que age a Polícia na busca da proteção da coletividade e na garantia da ordem, representando de forma direta e legítima o Estado que a mantém.

A responsabilidade objetiva impõe ao Estado o dever de indenizar o terceiro lesado por representante seu, no cumprimento de suas funções, independentemente se houve atuação deste com dolo ou culpa. Tais requisitos somente são relevantes na apuração da conduta do agente público, que poderá embasar uma eventual ação regressiva em seu desfavor, a fim de que a Administração possa receber de volta os valores gastos a título de indenização.

Por isso é que na atuação militar devem estar presentes a legitimidade, a atuação competente nos termos estritamente legais, o conhecimento profundo da atividade, o zelo e a eficiência necessários para o cumprimento do dever. Agindo assim estará o policial militar cumprindo com probidade seu ofício e prevenindo situações problemáticas que possam vir a lhe prejudicar, pois, ainda que o Estado venha a ser responsabilizado por atitude que tenha tomado, se a atuação houver sido praticada dentro dos limites de sua função não poderá a máquina estatal exigir do agente nenhum tipo de compensação.

 

7. Referências Bibliográficas.

ASSIS, Jorge César, NEVES, Cícero Robson Coimbra, CUNHA, Fernando Luiz. Lições de Direito para a Atividade das Polícias Militares e das Forças Armadas. 6° ed., Curitiba: Juruá, 2007.

CAHALI, Yussef Said. Responsabilidade Civil do Estado. 3° ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.

CAVALCANTI, Themístocles Brandão. Tratado de Direito Administrativo. 5°. ed., Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1964.

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 12° ed., São Paulo: Atlas, 2000.

FIGUEIREDO, Lucia Valle. Curso de Direito Administrativo. 8° ed., São Paulo: Malheiros, 2006.

MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 31° ed., São Paulo: Malheiros, 2005.

MELLO, Celso Antonio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 22° ed., São Paulo: Malheiros, 2006.

Nova Enciclopédia Brasileira de Consultas e Pesquisas. Novo Brasil, 1980.

SUNDFELD, Carlos Ari. Fundamentos de Direito Público. 4°. ed., São Paulo: Malheiros, 2006.

 

3 Definição encontrada na Nova Enciclopédia Brasileira de Consultas e Pesquisas. Novo Brasil, 1980, p. 1.197.

Mario Angelo de Oliveira Junior

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