Concurso público: “motivadores”, “turbinadores” e “triunfadores”

“¡Pensad vuestros propios pensamientos,…!

¡Vivid vuestra vida!

¡No me sigáis ciegamente, permaneced libres!”

MONTAIGNE


Parece que estamos no tempo dos cursos preparatórios, dos cursos online, das aulas virtuais, dos vídeos-aula, das retas finais, dos extensivos e intensivos, das maratonas, dos “shows de conhecimentos”, do “show do direito”… Os cursinhos1 ocupam tudo, invadem nossas vidas de forma hiper-realista e se dispersam em um fenômeno cada vez mais extremo. O discurso dos “melhores preparados” é uma apologia à inflação mediática do ensino preparatório para concursos, consumível por todos e a todas as idades, em todo momento, em casa, fora de casa e à distância.

Sem pretender menosprezar o papel útil, em termos de utilidade imediata, prática e paliativa dos cursinhos (porque qualquer parecido com o que caberia chamar uma boa educação universitária brilha, hoje, e de maneira clamorosa, por sua ausência) e evitando incorrer na hipocrisia de negar que nossos objetivos, recursos e oportunidades impedem, restringem e/ou condicionam nossas eleições, temos a sensação – compartida, por certo, com muitas pessoas – de que esse panorama atual tem favorecido e exortado um tipo de fantasia coletiva, uma espécie de difuso consenso cultural de sobrevalorização dos concursos públicos, que parece disseminar-se por contágio.

m seus ideólogos, seus porta-vozes, seus predicadores, seus defensores e toda uma indústria cujo principal objetivo parece ser o de magnificar, reafirmando nossa credulidade, a supersticiosa crença de que os processos seletivos constituem o caminho mais “rápido” e “seguro” para auto-afirmação e consagração profissional, ascensão e estabilidade sócio-econômica. Um tipo de crença a que os lógicos qualificam de “a falácia de subir-se ao carro”: se uma crença está muito estendida, tem que ser verdadeira. Enorme ingenuidade.

Mas há outro problema mais grave que, em nossa opinião, é um dos principais indicadores de que algo não vai bem. A evidência de que toda essa gigantesca máquina mediática de cursinhos e concursos, alimentando constantemente a sobrevivência e o êxito desse “tsunami concurseiro”, vem engendrando (e/ou recorrendo), com demasiada frequência, a outro tipo de fenômeno não menos preocupante. Referimo-nos aos gurus da motivação, aos “turbinadores de cérebro” e aos auto-proclamados professores triunfadores, “expertos em” ou “super campeões de” concursos públicos, muitos dos quais oferecem conselhos, métodos, receitas e/ou técnicas de motivação e de estudo que são uma confusa miscelânea de verdades, semi-verdades e mentiras. Explicamos.

Por exemplo, os “motivadores”, pregando um insofrível otimismo, a crença de que o poder da mente não tem limites, de que podemos alcançar tudo a que nos propomos e de que aquilo que concebemos como verdadeiro podemos converte em realidade, insistem na “lógica” de que só os bons momentos têm direito a existir. Primeiro, é evidente que ninguém busca ou deseja experimentar a parte desagradável e “negativa” da vida, mas, como não pode ser excluída, o mais aconselhável é que se aprenda a conviver com ela e a esforçar-se por superá-la. E este tipo de atitude é particularmente importante para aqueles que decidem passar pela experiência de fazer concursos, onde as dificuldades e/ou os eventuais momentos de frustração parecem ser inevitáveis.

Ademais, qualquer conselho, por motivador e comovedor que seja, não é mais que fruto da particular e idiossincrásica experiência de uma determinada pessoa. E como as opiniões de uma pessoa não podem ser mais sólidas que a informação em que se baseiam, há pouca razão para creer que as experiências dos demais sejam mais informativas e relevantes que a nossa para valorar, em primeira pessoa, o que percebemos da realidade.

Segundo, porque se trata de um tipo de aconselhamento em que o “motivador”, normalmente, utiliza a regra do “Cara, ganho eu; coroa, perdes tu”. Queremos dizer que com as mensagens de que “basta com que creias que podes” e/ou “se eu consegui, qualquer um consegue”, chega também, em um sussurro, a mensagem ominosa de que se não consegues o que desejas, se fracassas, se te encontras mal, desanimado ou derrotado, a culpa é só (e toda) tua. De verdade, há algo mais cruel que acrescentar a auto-incriminação, ainda que dissimulada, a um eventual fracasso?

Já osturbinadores”, aqueles que afirmam haver passado uma vida inteira estudando “errado”, mas que, depois de uma aprovação e como por iluminação divina, descobriram a forma “correta” de estudar para aprovar, parece que se encontram perdidos em uma selva de falsas idéias. Com demasiada frequência desconsideram, dissimulam ou simplesmente ignoram, ao altear as maravilhas do cérebro humano e a possibilidade de “turbiná-lo”, que nosso cérebro evoluiu “a partir de cerebros animales y que tienen mucho en común con ellos, tanto estructural como funcional y cognitivamente y que, por excepcional que sea, es el producto de la evolución darwiniana, con todas las limitaciones que ello implica” (Llinás e Churchland); que, “lejos de ser un órgano perfecto, es un kluge, un apaño, o más bien, un conjunto de apaños improvisados por la evolución para resolver diversos problemas de adaptación […] Es decir, una chapuza que vive para engañarnos”. (G. Marcus)

Além disso, a vida cotidiana não é fácil, nem sequer para os mais adaptados dos seres humanos. Muitos nos esforçamos buscando a forma de perder peso, de ter êxito nos concursos, de encontrar a pessoa ideal para toda a vida, etc. Portanto, não é nenhuma surpresa que nos deixemos seduzir por técnicas e métodos de estudo que prometem soluções infalíveis para produzir câmbios em nossos comportamentos de forma rápida, eficaz e que exija muito pouco de nosso esforço e disposição pessoal.

As técnicas de leitura dinâmica e de memorização, por exemplo, estão de moda e prometem incrementar a velocidade de leitura e a capacidade de memorização em umas medidas que sobrepassam a velocidade leitora máxima de que é capaz o olho humano ( de aproximadamente 300 palavras por minuto) e as limitações próprias do cérebro humano no que se refere ao armazenamento de informação. Em ambos os casos, nenhuma dessas técnicas aumenta a velocidade de leitura ou a memória sem esforço pessoal e/ou sem diminuir, ao mesmo tempo, nossa capacidade de compreensão e entendimento (Craver).

Resumindo, o saber não somente ocupa lugar no cérebro (já que se criam novas conexões entre os neurônios implicados), senão que a leitura rápida e as memórias excelentes costumam ir unidas a juízos débeis. Ler e saber mais não significa, definitivamente, ler e saber melhor.

E aqui vai um conselho de cautela epistemológica: antes de entregar-se a esses tipos de promessas ou receitas milagrosas, tenha em conta que sendo o cérebro humano produto de um desenho acidental, limitado pela evolução, nossa própria humanidade limita a percepção, o processamento e o armazenamento indiscriminado de toda informação que processamos, que nossa capacidade de memorização têm limites e que esquecer não somente é normal e inevitável, senão que é igualmente recomendável e saudável.

Quanto aostriunfadores” – aliás, a quase totalidade -, todos parecem compartir, com uma peculiar e afetada ânsia de auto-afirmação e exageração das próprias possibilidades, a tendência a serem verdadeiros “revisionistas históricos”, isto é, da tendência tão humana de recuperar recordos surpreendentemente duvidosos de nossas atitudes passadas (G. Marcus). Nosso tipo preferido é aquele indivíduo (professor, palestrante, escritor,…) que descreve, com patológica e reiterada insistência, sua experiência pessoal de concursos em que sobreleva encantado lembranças claramente negativas de seu passado, em especial quando lhe permite apresentar-se, “a lo Rocky”, triunfando ante a adversidade.

Aquele sujeito que, para usar a expressão de Platão, pôde “ser mais forte que ele mesmo”, que com uma força de vontade quase “sobre-humana”, lutou, sofreu, “se matou estudando”, não “pegou” ninguém durante anos, perdeu amigos e namoradas, engordou ou emagreceu, superou limites, se sacrificou ao máximo…, mas que, depois de tudo, conquistou a tão sofrida, sonhada e desejada aprovação, a vitória de poder desfrutar “do dia mais feliz de sua vida”. O dia mais feliz de toda uma vida? Ah ta!

Claro que isto não significa que devamos descartar de plano tudo o que nos diz essa indústria do “sucesso garantido”. Muitos livros, vídeos, palestras e conselhos dessa natureza nos alentam a assumir nossas responsabilidades, a ter disciplina, a estudar com regularidade e atenção, a enfrentar as dificuldades, a buscar sabedoria e felicidade, a confiar em nossas capacidades, a superar nossos momentos de desânimo e frustração, a ter fé, a acreditar que “tudo passa”… Em geral, todos são bons conselhos, ainda que não sejam em nada distintos dos que recebemos de nossos pais e de nossos avós. E o melhor de tudo: não nos cobram por eles.

O verdadeiro problema é que toda essa prolífica fonte de mitos e distorcidas crenças normalmente vem intercalada com falsos matizes psicológicos e com afirmações que contradizem frontalmente algumas evidências científicas. Como consequência, acabam por produzir nos mais crédulos aquilo que os economistas denominam de custo de oportunidade ou custo alternativo, isto é, o fato de que as pessoas que seguem ou adotam uma medida ineficaz podem estar perdendo a oportunidade de utilizar um meio efetivo ou obter uma ajuda que lhes seja mais necessária.

Resultado: as pessoas que crêem equivocamente que os conselhos otimistas, as receitas mágicas e as promessas de êxito são um meio eficaz para superar as dificuldades podem estar investindo uma grande quantidade de tempo, dinheiro e recursos (cognitivos e emocionais) em uma atividade inútil (Moore). Também podem estar desaproveitando outros meios efetivos para aprender e que poderiam ser-lhes realmente importantes e mais benéficos. Já sabem o que dizem: “as oportunidades marcam nossa vida, inclusive aquelas que deixamos passar”.

Claro que entendemos que no gosto de cada pessoa entram muitos ingredientes distintos, que a mente humana sempre busca algo mais acariciador que a verdade e que a importância das coisas que experimentamos é sempre uma questão de interpretação e valoração pessoal. Há receitas, promessas e conselhos divertidos, atraentes e otimistas que servem para levantar o ânimo, motivar, alegrar o dia e dar certa segurança. Em nossa opinião, contudo, não há que fazer-se demasiadas concessões, posto que estudar e aprender não guarda uma relação muito estrita com esse tipo de prática.

Se escutar os demais fosse igual a aprender, todos nós seríamos tão inteligentes que nem suportaríamos. Somente na experiência concreta de estudar, centrando toda nossa atenção no que estamos aprendendo, praticando de forma repetida, persistente e com um esforço ascético, isto é, exercendo nossas melhores capacidades e dando o melhor de nós mesmos para chegar a ser o melhor que podemos chegar a ser, que conseguiremos descobrir o mais acertado e adequado método, receita ou técnica pessoal para motivar-nos, aprender, armazenar e recordar o que percebemos. O resto é mitologia.

Um conselho final: tenha sempre em conta o fato de que não somente é de vital importância não permitir que os dados inúteis apartem aos úteis a empurrões, senão que, às vezes, o mais recomendável é atuar como na fábula de Ulisses e as Sereias e, da mesma forma que o ator, atar-se a algo mais sólido e útil para não cair seduzido pelas doces palavras e sedutoras promessas das atuais “sereias do êxito”.

Depois de tudo, e não parece demasiado recordar, quem se limita a seguir aos demais, nada segue, nada encontra e, pior ainda, nada busca.

 

BIBLIOGRAFIA MÍNIMA

Baumeister, R. F. & Tierney, J. (2011). Willpower. Rediscovering the Greatest Human Strength, New York: The Penguin Press.

Chabris, C. y Simons, D. (2011). El gorila invisible. Cómo nos engaña nuestro cerebro, Barcelona: RBA.

Eagleman, D. (2011). Incognito: The Secret Lives of the Brain, New York: Pantheon Books

Ehrenreich, B. (2011). Sonríe o muere. La trampa del pensamiento positivo, Madrid: Turner.

Elster, J. (1984). Ulyses and the Sirens. Studies in Rationality and Irrationality, Cambridge: Cambridge University Press.

Gilovich, T. (2009). Convencidos, pero equivocados, Barcelona: Milrazones.

Kandel, E. (2007) En busca de la memoria. Una nueva ciencia de la mente, Buenos Aires: Katz Editores.

Lilienfeld, S. O. et al. (2010). 50 grandes mitos de la psicología popular. Las ideas falsas más comunes sobre la conducta humana, Madrid: Biblioteca Buridán.

Linden, D. (2007). The Accidental Mind: How Brain Evolution Has Given Us Love, Memory, Dreams, and God. Cambridge, MA: Belknap Press of Harvard University Press.

Llinás, R. y Churchland (Comp.) (2006). El continuum mente-cerebro. Procesos sensoriales, Bogotá: Universidad Nacional de Colombia

Malabou, C. (2007). ¿ Qué hacer con nuestro cerebro?, Madrid: Tiempo al Tiempo.

Marcus, G. (2011). Kluge. La azarosa construcción de la mente humana, Barcelona: Planeta.

1 Utilizaremos, sem qualquer intenção pejorativa, o termo “cursinho(s)” para referir-nos a todo esse universo de cursos extra-universitários preparatórios para concursos. A razão é simples: comparados com a duração mínima de um Curso de graduação universitário, todo e qualquer curso preparatório, para o bem ou para o mal, é um “cursinho”.

Atahualpa Fernandez

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