Da tutela da vontade à tutela da confiança: uma questão de princípios

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Sumário: 1 Introdução; 2 Breves Notas Acerca do Direito Contratual e a Reorientação pelos Princípios; 2.1 Da Autonomia Privada; 2.2 Princípios da Boa Fé Objetiva e do Equilíbrio Contratual; 2.3 Princípio da Livre Iniciativa; 2.4 Função Social do Contrato; 3 A Atuação do Juiz no Âmbito do Direito Contratual; 4 Conclusão; 5. Referências.

1 Introdução

O presente estudo toma por núcleo a investigação da essencialidade da apreensão da doutrina contratual em relação à manifestação da vontade, observando os princípios que regem a teoria contratual, em especial, o princípio da boa-fé objetiva, designativo da tutela da confiança, elaborando, ainda, uma releitura da relação contratual contextualizada de conformidade com os demais princípios da nova ordem negocial: autonomia privada, livre iniciativa, função social do contrato, equilíbrio econômico e dignidade da pessoa contratante.

Além da investigação em sede dos princípios que regem o direito contratual, cabe destacar a atuação do juiz na análise, interpretação e integração do direito contratual, pois é deveras importante uma verificação pormenorizada de cada detalhe do contrato, sendo que o juízo de decidibilidade necessita de um zelo refinado acerca da teoria contratual, tanto quanto da própria relação jurídica contratual.

Por derradeiro, será abordada a fragmentação da teoria contratual, a conseqüente formulação de novos critérios e implicações decorrentes do paradigma da essencialidade.

Espera-se, com esta abordagem, revisitar aspectos vitais do direito contratual e importantes para a orientação dos pactos celebrados no ambiente sócio-negocial.

 

2 Breves Notas Acerca do Direito Contratual e a Reorientação pelos Princípios

O contrato sendo instrumento utilizado para regular as relações entre as partes contratantes, visa, presentemente, assegurar o equilíbrio econômico e social, afastando as desigualdades porventura existentes, garantindo e protegendo a relação jurídica negocial.

A ideia de contrato, conforme Judith Martins-Costa (1992, 1122), “nasce, no sentido moderno, com a ideia de autonomia da vontade”, essencial para começar a desenvolver qualquer tipo de debate ou análise acerca do direito contratual, posto que, para que exista um contrato, faz-se necessária a vontade das partes contratantes na realização de determinado contrato.

A autonomia privada, no contexto dos limites impostos, passa a considerar os parâmetros necessários à tutela da manifestação da vontade, com ênfase para a não discriminação, selecionando os princípios eleitos para tal fim.

A manifestação da vontade será analisada de forma pontual considerando ser elemento essencial ao ato negocial fundada na nova ordem principiológica, responsável pela reorientação da negociabilidade contemporânea.

Os Códigos Civis da modernidade seguem a orientação francesa mantendo o apego à autonomia privada e à tutela da vontade. O sistema civil pátrio, em sede de negócio jurídico, seguiu a tradição do direito continental em relação à importância da manifestação da vontade no âmbito da autonomia privada, permanecendo como cânone hermenêutico em relação à interpretação da vontade real e não ao sentido literal da declaração. A hermenêutica da boa-fé objetiva aponta, igualmente, para as principais codificações estrangeiras, justificando a incursão.

Por este percurso das codificações modernas, em paralelo à atual teoria contratual indicam, em síntese, os eixos emblemáticos da superação paradigmática e resumidos pelas seguintes transformações relevantes: deslocamento do individualismo para a tutela do interesses coletivos, limites impostos à autonomia privada, constitucionalização e funcionalização do direito contratual, definição dos princípios nucleares da negociabilidade definidos pela boa-fé objetiva e pela função social dos contratos, fundados pelo princípio constitucional da livre iniciativa e do equilíbrio econômico dos pactos renovando a doutrina da manifestação da vontade.

A formação, execução e interpretação dos contratos são influenciadas pelas importantes transformações, mantendo a disciplina da manifestação da vontade em observância da averiguação da intenção das partes e não o sentido literal do contrato foi adotada pelo CC brasileiro de 1.916 e o atual, consoante regra do Art. 112. A diferença está consagrada pelo acréscimo da tutela do confiança recíproca entre partes, lastreada pela boa-fé objetiva, equilíbrio econômico e a socialização dos pactos, reunidos em benefício dos fins negocias como preconizados pelos princípios invocados.

Advém do direito comparado a disciplina da pioneira do busca da vontade real, assinalando marco legislado relevante em relação à ruptura com o formalismo, consolidando a definição pela materialidade indispensável ao universo negocial e ao direito como um todo. O direito alemão consagra pela regra do § 133 do BGB: “Na interpretação de uma declaração de vontade deve averiguar-se a vontade real, e não ater-se ao sentido literal da expressão”, determinando o princípio geral da interpretação contratual.

A averiguação da vontade comum, consignada como avanço, foi consagrada pelo CC italiano, art. 1.362, pelo CC francês, art. 1.156 e pelo CC argentino. O CC português nos arts. 236 a 238 fixam para a interpretação o “sentido negocial decisivo” visando resolver o conflito entre verdade real e declarada, sendo o declarante responsável pela declaração. No direito argentino a interpretação no âmbito contratual se refere ao conteúdo, vale dizer, aos direitos e obrigações, tendo por objetivo descobrir a vontade comum, o que é habitualmente certo.

Com a crise dos contratos e a posterior superação, ancorada por significativos avanços, finalmente conduz a um bem concebido rol de limites que fazem a contenção da autonomia privada tradicional, reorientado o núcleo negocial da tutela da vontade, definindo perfil compatível com os postulados do Estado Democrático de Direito.

 

2.1 Da Autonomia Privada

O dirigismo contratual realinha a autonomia privada enquanto expressão maior, que foi, da liberdade de contratar, para limitar seu campo de invocação.

A transcendência de valores conduz à transcendência de conceitos. Alguns conceitos jurídicos assumem a face de sentenças de mármore sendo perpetuados em sua rigidez e então congelam. Foi assim com a autonomia privada tida como poder absoluto do indivíduo para contratar. De fato, somente movimentos vigorosos e em conjunto, conseguem promover a ruptura com o velho paradigma para deixar entrar o novo. A autonomia privada, redefinida, assume expressão limitada, em conformidade com a necessidade de conduzir as relações contratuais ao plano do equilíbrio indispensável em razão do perfil negocial socializado. (BORGES FERREIRA, 2005, p. 83-84)

A ruptura com o paradigma formado pelo liberalismo-individualismo no campo contratual, após o enfrentamento da crise do negócio jurídico, reorganiza as bases negociais sob influência do novo paradigma democrático e coletivo. Esse deslocamento impõe limites à autonomia privada nas relações negociais.

Bem observa Judith Martins-Costa (1992, p.141) ao gizar:

A autonomia contratual não é mais vista como um fetiche impeditivo da função de adequação dos casos concretos aos princípios substanciais contidos na Constituição a as novas funções que lhe são reconhecidas. Por esta razão desloca-se o eixo da relação contratual da tutela subjetiva da vontade à tutela objetiva da confiança, diretriz indispensável para a concretização, entre outro, dos princípios de superioridade do interesse comum sobre o particular, da igualdade (em sua face positiva) e da boa-fé em sua feição objetiva.1

Os limites da autonomia privada implicam na revisão da liberdade de contratar, vale dizer, o princípio da liberdade contratual é tomado em simetria com os princípios da igualdade das partes, prevalecendo o equilíbrio dos interesses, em face da função social dos pactos, enquanto expressão da justiça contratual. Os pactos, agora socializados, buscam seus fins, vale dizer, inclusive os fins práticos. (BORGES FERREIRA, 2005, p. 85).

A autonomia privada enfrenta a desconstrução necessária em abandono do perfil liberal, recepcionando a disciplina contemporânea do contrato.

Nessa esteira cumpre realçar a questão atual demarcada pela discussão acerca da autonomia privada atinente ao emprego do princípio como limite à discriminação no âmbito negocial.

Paulo Mota Pinto (2010, p. 328-329) adverte acerca da:

Autonomia privada como direito fundamental à autodeterminação do indivíduo na vida jurídica, o poder de fazer escolhas e diferenciações considerando a conveniência econômica e, também, frente ao princípio da igualdade que não valendo nas relações privadas enquanto proibição de arbítrio, ou imperativo de razoabilidade, vem sendo salientado na doutrina como exigência de uma justificação razoável para a diferenciação […]. O espaço de liberdade assegurado, mesmo em face do princípio da igualdade, pelo princípio da autonomia privada, tem, porém, os seus limites na exigência do respeito pela dignidade da pessoa humana (mais do que na circunstância de se estar a exercer uma posição de ‘poder privado’, ‘poder econômico’ ou ‘poder social’). Será, assim, ilícito o conteúdo de um negócio jurídico ou uma recusa de contratar, se envolver infração ao princípio da negação de discriminações, por exemplo, em razão da origem étnica, ou da ‘raça’, ou em razão do sexo. Não pode, com efeito, pretender-se que o Estado – a lei e os tribunais – reconheçam e dêem eficácia a atos dos particulares dirigidos a estas formas de discriminação […]. É que o princípio constitucional da igualdade tem de conciliar-se, no domínio do direito privado, com a liberdade contratual reconhecida aos particulares, e tem sobretudo em vista criar o dever do Estado de tratar igualmente os cidadãos, mas não impor-lhes qualquer neutralidade em face de suas convicções ou mundividências”.

A continuidade da hodierna autonomia privada restringe a liberdade de contratar que deixou de ser aquela exacerbada do movimento liberalista, para tornar-se uma liberdade objetiva. (NEGREIROS, 2002, p. 118).

A revisão da autonomia privada nas relações negociais passa a proteger a manifestação da vontade real, assegurando, ainda, a vedação contra discriminações ganhando contorno de dimensão positiva e feição eficacial expressiva no âmbito dos pactos.

 

2.2 Princípios da Boa Fé Objetiva e do Equilíbrio Contratual

Com a constitucionalização do direito civil registra-se uma redesignação dos pactos, considerando a ruptura em relação ao individualismo e a contemplação da tutela dos direitos coletivos, sendo que a legislação consumerista demarca espaço relevante referente a este seguimento.

Em sede de orientação principiológica deve ser analisada a contribuição trazida para reafirmar a tutela da vontade acrescida pela tutela do confiança explicitada pelo princípio da boa fé objetiva consoante regra do Art. 422: “Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé.”

O princípio da boa-fé objetiva orienta a conduta dos contratantes para o agir de forma leal e com confiança, pautando seus atos pela ética e moralidade negocial na efetivação no contrato, despidos da intenção de lesar, prejudicar ou levar vantagem, estabelecendo harmonia e equilíbrio nas relações contratuais .

“O princípio da boa-fé objetiva constitui-se num dos mais importantes, pois acredita-se abranger os outros princípios. E, com o acréscimo de novos princípios, é natural que se perceba um processo de fragmentação e relativização da teoria contratual” (NEGREIROS, 2002, p. 110).

Consoante doutrina de Judith Costa Martins a boa-fé objetiva tem tríplice função: como cânone hermenêutico-integrativo, como Norma de criação de deveres jurídicos e como limitação ao exercício de direitos subjetivos.

A boa-fé como cânone hermenêutico integrativo é “a mais utilizada no preenchimento de lacunas do negócio, quando o contrato não traz em seu bojo todas as possibilidades de situações previstas ou previsíveis aos contratantes e flexibilizar a vontade declarada.” (COSTA MARTINS, p. 428)

Serve está definição para atentar que as cláusulas contratuais devem ser analisadas como um todo, ou seja, “Por igual, influem na formação deste conjunto significativo às circunstâncias concretas do desenvolvimento e da execução contratual visualizadas como um todo”. (COSTA MARTINS, p. 430)

A boa-fé objetiva considerada na perspectiva da função de norma de criação de deveres jurídicos considera que “as relações contratuais geram deveres principais – deveres primários -, que representam o núcleo da relação contratual (v.g. na compra e venda o dever de pagar o preço) e deveres laterais – deveres secundários e deveres instrumentais/laterais/anexos. Os deveres secundários. se subdividem em secundários meramente acessórios da obrigação principal (destinados a preparar o cumprimento da obrigação principal, v.g., dever de embalar a coisa vendida) e secundários com prestação autônoma (sucedâneo da obrigação principal, v.g., dever de indenizar diante do não cumprimento da obrigação, por culpa). Importa aprofundar-se na caracterização dos deveres instrumentais tidos como acessórios da obrigação principal ou da conduta, pois se caracterizam por uma função de auxiliar da realização positiva do fim contratual e de proteção à pessoa e aos bens da outra parte contra os riscos de danos concomitantes. Ressalte-se que Ao ensejar a criação desses deveres, a boa-fé atua como fonte de integração do conteúdo contratual, determinando a sua otimização, independentemente da regulação voluntaristicamente estabelecida. (COSTA MARTINS, p. 437)

A boa-fé como limitação ao exercício de direitos subjetivos, em desdobramento singular, retoma a teoria do abuso de direito coibindo propósitos de lesar, causando dano ao outro contratante.

Com relação ao princípio do Equilíbrio Econômico faz-se importante e necessária uma releitura acerca da relação jurídica contratual, indispensável à compreensão do ato negocial no contexto contemporâneo. Paulo Nalin (2001, p. 202 e 205) define que “o valor jurídico maior a ser tutelado, conforme atual noção da justiça contratual, é o equilíbrio, ante o cânone constitucional da solidariedade.” E ainda prossegue, dizendo o seguinte: “Quando se fala em relação jurídica, portanto, esta não é um mero exercício de direito (subjetivo) de crédito perante o débito, representa muito mais, dentre o que, um inegável dever (necesssitas agendi) de cooperação do credor.”

O Art. 51, IV, do Código de Defesa do Consumidor, faz menção ao princípio do equilíbrio econômico, pois defende que não podem existir situações que coloquem o consumidor em “desvantagem exagerada”, ou seja, em qualquer relação contratual, deve prevalecer o equilíbrio e inexistir desigualdades que venham a beneficiar apenas uma das partes do contrato.

Afirma Castanheira Neves (apud NEGREIROS: 2002, 154): “Verdadeira justiça só será a que se recusa a cobrir com o equilíbrio aparente das justificações formais as verdadeiras injustiças dos desequilíbrios reais.” Deste modo, deve haver o real equilíbrio na relação jurídica contratual, e este não deve ser somente aparente, ou através de formalismos, mas, sim, deve existir de modo efetivo no caso concreto com o qual se deparará.

Sendo assim, deve existir entre as partes contratantes o equilíbrio entre as obrigações ajustadas com base no princípio da boa-fé objetiva, caminho assecuratório da necessária e basilar segurança jurídica que no contexto contratual vem para assegurar o cumprimento do pacto, realizando os fins visados pelas partes na forma convencionada e produzindo os efeitos colimados.

 

2.3 Princípio da Livre Iniciativa

O novo cardápio principiológico conduz aos princípios da livre iniciativa, temperado pelos princípios do equilibro econômico e o da função social do contrato.

Com relação ao Princípio da Livre Iniciativa, enquanto princípio da ordem econômica, de observar sua inteira extensão ao constar no caput do Art. 170 da Constituição Federal de 1988.

A previsão constitucional do artigo 170 da Magna Carta é, inegavelmente, núcleo de revalorização do sujeito, aquele mesmo espectador dos fins práticos. A ordem econômica constitucional torna assentar a dignidade humana do sujeito para então, recolocá-lo nos diversos lugares que realmente ocupa em sociedade. Assim, o primeiro sujeito nomeado pela ordem, é o trabalhador, seguido do empresário, aquele da livre iniciativa, quiçá o empregador. A esses sujeitos a promessa de segurança e esperança do trabalho humano digno e da liberdade equilibrada. Na indicação do cardápio principiológico do artigo 170, e incisos, o sujeito é eleito, sem dúvida, o titular dos ditames da justiça social; define-se como cidadão no âmbito da soberania nacional, seguido do sujeito-proprietário da propriedade privada e funcionalizada. Por fim, o sujeito-consumidor, de bens, serviços, valores, princípios e justiça social. Não há no ordenamento jurídico pátrio similar contemplação do sujeito, contextualizado vezes tantas como sujeito de titularidades. Ao cabo e ao fim, há uma imperiosa força denunciando a importância, de significado nobre, ainda não revelado, contido na dignidade do sujeito, finalmente nominado, sujeito-contratante. Se, em diversos ambientes principiológicos, como analisados, voltados à proteção do contratante no trânsito jurídico negocial, deve ser inferido que os fins sociais do contrato asseguram a dignidade do contratante. ( BORGES FERREIRA, 2005, p. 86-87).

O princípio da liberdade de iniciativa é conceituado com propriedade por Francisco dos Santos Amaral Neto (1986, p. 97), que o define como sendo “um princípio axiológico segundo o qual os particulares têm o poder de criar e desenvolver uma atividade econômica, disciplinando-a juridicamente conforme seus interesses.

Em síntese a liberdade de iniciativa é o substrato de uma nova realidade econômica para a empresa e, por este motivo, é de fundamental importância para o processo de desenvolvimento econômico. O aspecto dinâmico do modo de produção capitalista, tendo por fundamento a liberdade e sua expressão na sociedade contemporânea, a análise da liberdade como princípio, meio e fim, deve ser apreendida igualmente, como a liberdade inerente aos pactos.

 

2.4 Função Social do Contrato e Dignidade da Pessoa Contratante

O Art. 421 do Código Civil de 2002 prevê o seguinte: “A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato.” Isto significa que o contrato deverá obedecer à sua função social para que todas as suas etapas sejam cumpridas e ele seja efetivamente válido e apto a produzir seus efeitos.

Função social como princípio da contratualística contemporânea visa a prevalência do interesse coletivo sobre o interesse individual na busca da justiça social, distributiva, onde não haja desigualdades em relação às avenças pactuadas pelos contratantes.

Deste modo, a função social do contrato tem por intuito fazer com que sejam satisfeitos os interesses não só das partes contratantes, como da sociedade como um todo. Deve existir uma harmonização entre os interesses e vontades das partes contratantes com os interesses da sociedade. Assim, é notório que os princípios da igualdade, da boa-fé, do equilíbrio econômico, da dignidade da pessoa humana, devem estar presentes para que seja realmente atendida a função social que todo contrato deve possuir.

Luciano Benetti Timm (2001, p. 73) faz a diferenciação entre a função social do contrato e a função social do direito contratual.

Para fins de elucidação, deve-se tratar diferentemente as diferentes funções em questão. A primeira é a função social do contrato (tout court) na sociedade, que é fática e compreendida pela observância do Direito em ação, valendo-se da interdisciplinaridade científica. A descrição deste fato é o objeto daquilo que denominei hard social sciences (Sociologia, Economia). A outra é a função social do direito contratual. Esta é objeto típico de análise da doutrina jurídica, na tentativa de orientar os tribunais, dadas algumas premissas fáticas transplantadas de outras ciências – e sua natureza é essencialmente normativa.

Desta feita, pode observar a estreita relação e pequena diferença, mas existente, entre função social do contrato e função social do direito contratual, pois aquela é baseada em questão fática, enquanto esta, fundamentada na norma jurídica para ganhar corpo e existência.

O professor Timm (2001, p. 76-80) traz em seu trabalho um embate de paradigmas conflitantes pela interpretação da razão e dos limites da função social do contrato. Os dois paradigmas são os dos modelos solidarista (ou paternalista), que se baseia em uma visão sociológica da sociedade, e, como consequência, do contrato; e de direito e economia do direito contratual (ou da eficiência econômica), lastreado na noção individualista, que é própria dos economistas).

Tendo-se em vista o dispositivo constante no Art. 421 do Código Civil, e levando-se em consideração o contexto social frente o conflito de paradigmas apontado a considerar a prevalência do modelo solidarista, visto que traz uma visão mais humana para a interpretação da função social do contrato, visando uma justiça social. Grande parte da doutrina reconhece que este modelo deve prevalecer, ao contrário do professor Timm, que defende nitidamente a prevalência do modelo de direito e economia do direito contratual, pois considera que a abordagem econômica do Direito deve ser empregada para explicar a função social do contrato em um ambiente de mercado, não se considerando uma das partes da relação jurídica contratual como a “parte mais fraca”, mas sim, considerando a sociedade parte do mercado. Neste sentido, continua sua defesa acerca desse modelo, defendendo que as partes contratantes devem ser individualistas.

Deve existir um equilíbrio contratual, e a lei serve de instituto protetor dos interesses sociais, pois busca limitar, e ao mesmo tempo legitimar, a autonomia da vontade, estabelecendo e valorizando a questão da confiança firmada na relação contratual, e respeitando as expectativas e a boa-fé das partes contratantes, devendo ganhar destaque o interesse social quando da realização de um contrato. Assim, haverá certo intervencionismo do Estado, visando proteger a justiça social, com base no princípio da boa-fé objetiva.

Pedro Francés Gómez (1999, p. 431), da Universidade Complutense de Madrid, traz uma nova forma de ver a economia, onde o mercado deve trazer o bem-estar da sociedade, ou seja, deve atender à justiça social e à dignidade da pessoa humana, conforme se pode observar:

Esta reflexión estuvo inspirada por la constatación de que las reglas de muchos mercados (o la ausência de ellas) permiten situaciones moralmente repugnantes, como el espectáculo de niños trabajando hasta el agotamiento a cambio de un salario miserable; o políticamente recusables, como el sacrifício de millones de personas en el altar de los índices macroeconómicos. Estas cosas suceden mientras en los mercados bursátiles las <<normas de conducta>> y los controles administrativos se multiplican para permitir un juego limpio que permita iguales oportunidades para todos. Los mercados son, como se ve, lo que queramos hacer de ellos: un instrumento para el bienestar y la libertad, o um medio refinado para la inmoralidad y el sufrimiento. Mi contribuición sólo pretende sugerir que este no és um problema económico, sino sobre todo ético y político.2

Por tais fundamentos, cabe remarcar a importância da reflexão suscitada pela investigação no que pertine à função social do contrato e sua imbricações decorrentes do direito e o consequente paradigma solidarista em contraponto à economia de mercado.

Neste ponto, começa a emergir o conceito que na Constituição Federal é definido como dignidade da pessoa humana, impondo a todos o dever de tornar a sociedade mais justa. Essa dignidade não pode e não deve ser vista apenas sob o prisma dos direitos, mas também dos deveres. O contrato social, neste contexto, é ao mesmo tempo fundamento e limite do controle do Estado sobre certa esfera da vida em sociedade (NEGREIROS, 2002, p. 26).

Ingo Wolfgang Sarlet (2002, p. 62) conceitua a dignidade de pessoa humana de forma precisa:

Entende-se por dignidade da pessoa humana a qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos.

Nessa dimensão conceitual insere-se a indispensável tratativa da dignidade da pessoa contratante. Neste passo, a doutrina de Tereza Negreiros (2002, p. 30-32) indica o paradigma da essencialidade possibilitando a distinção dos contratos à luz das diferentes funções que desempenham em relação às necessidades existenciais do contratante. Assim, como consequência, a primazia das situações existenciais (decorrência da cláusula geral de tutela da pessoa humana) e os deveres impostos pelo princípio da solidariedade social são considerados como fundamentos para a emergência do denominado paradigma da essencialidade.

Em uma palavra, assiste-se ao que a historiografia das revoluções científicas denomina corte epistemológico ou mudança de paradigma. As transformações do direito civil são transformações de caráter essencial. De fato, a repersonalização, funcionalização, socialização e publicização do direito civil são expressões que denotam o esforço teórico para determinar quais são os princípios e valores aptos a dar unidade e coerência ao direito civil contemporâneo. A Constituição Federal possui dentre seus princípios o da dignidade da pessoa humana, e o Código Civil passa a ficar comprometido com tal princípio também, e, por isso, não mais se conserva neutro nem indiferente diante das desigualdades sociais, buscando sempre um equilíbrio e que se atenda à função social do contrato. (NEGREIROS, 2002).

Cabe remarcar que a Constituição Federal no Art. 170 e 193 prioriza a valorização do trabalho humano, da livre iniciativa, tendo por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social.

O despontar do paradigma da essencialidade é fundamentado na necessidade de se atender à dignidade da pessoa contratante, visando a tutela das desigualdades para alcançar o valor oposto representado pelas igualdades, fornecendo para a atuação do juiz mais um instrumento capaz de auxiliar na decisão visando atender as necessidades materiais dos contratantes, objetivando segurança e justiça contratual.

A eficácia da função social do contrato contempla a realização da justiça social dos pactos, uma justiça distributiva, onde a cada um é concedido o que seja consoante com a sua necessidade, passando pela qualificação do sujeito e pela busca do bem comum das partes contratantes.

 

3 A Atuação do Juiz no Âmbito do Direito Contratual

O juiz possui o importante papel do julgamento e da resolução de controvérsias existentes no mundo jurídico. No campo do direito contratual, essas controvérsias se encontram por vezes mais latentes. Para tanto, faz-se de grande valia uma análise sobre a atuação do juiz, sobre quais princípios ele deve se pautar para proferir sua decisão, para somente então concluir com a proteção à liberdade de iniciativa econômica.

Robert Alexy (1986) é defensor da atuação efetiva do judiciário como garantidor da Lei Fundamental e de seus princípios. Lênio Luiz Streck (2009) afirma a necessidade de uma maior atuação dos juízes monocráticos no controle difuso de constitucionalidade das leis que aplicam, pautando suas alegações na cadeia principiológica constitucional. Para ele, o parâmetro a ser utilizado em qualquer decisão judicial deve se pautar nos princípios constitucionais.

O juízo de decidibilidade, objetivando a realização da justiça contratual mais efetiva, assenta a análise do caso concreto, também, na interpretação principiológica. Assim, a decisão é pautada nos princípios constitucionais e novos princípios contratuais. O julgador, ao analisar a relação contratual para proferir sua decisão de conformidade com a nova ordem contratual atento à ruptura paradigmática.

André Nicolau Heinemann Filho (2011, p. 57) aborda o tema da atuação do juiz na interpretação e integração dos contratos, e como conclusão, menciona que:

[…] para solução das lides postas, a verdade em questão a ser procurada, frise-se, não deve ser a verdade dos fatos do juiz e sim a verdade das partes. É a realidade delas, e por conseguinte, a realidade do problema vivenciado por elas, que comporão a verdade procurada pelo magistrado quando ela atua na integração e na interpretação dos negócios jurídicos irradiadores de desavenças.

Ao considerar a investigação da verdade das partes depreende-se desta orientação a importância de conjugar a teoria tradicional da busca da vontade real das partes com a nova metodologia trazida pelos novos princípios negociais. Infere-se que a tutela da vontade, ainda que considerada por parte respeitável da doutrina como componente estruturante do direito privado clássico permanece como indispensável à atividade negocial.

Cabe afirmar, a manifestação da vontade como elemento essencial do negócio e, bem por esta dimensão, tutelada pelas codificações modernas e pós-modernas apontadas anteriormente. O exame de conjunto impõe juízo de valor de união e não de exclusão para agregar à tutela da vontade a tutela da confiança carregada de uma expressão trina, como explicitada nas funções plurais da boa-fé objetiva.

Por fim, considerando a indispensável segurança jurídica, objetivada na apreciação do caso concreto, deve o julgador conduzir sua atuação, considerando o poder de discricionariedade de um lado, e a doutrina da nova teoria negocial de outra parte, visando a realização da justiça negocial, assegurando a operabilidade dos mandamentos constitucionais e o que mais recomendado pela doutrina contratual.

 

4 Conclusão

A análise da teoria contratual é de suma importância para a compreensão da relação contratual, suas fases, princípios regedores como a boa-fé objetiva, equilíbrio econômico, livre iniciativa e da função social do contrato, além do princípio da dignidade da pessoa humana, que deve se fazer presente em toda e qualquer relação, não apenas na contratual, como nas relações sociais em geral.

A tutela da vontade, definidora do modelo contratual clássico, permanece íntegra na nova contratualística, como elemento essencial devendo ser conjugada pela influência dos novos princípios negociais, de par com a tutela da confiança.

A autonomia privada, antes concebida pela influência individualista, comparece redesignada pelos limites a ela impostos e atendendo os parâmetros necessários para evitar qualquer atitude discriminatória em relação às partes contratantes no que se refere ao poder de auto-regramento do pacto.

A boa-fé objetiva, como princípio nucleador do contrato contemporâneo, reúne em seu núcleo o próprio equilíbrio das obrigações negociais entre partes e a função social do contrato.

O princípio do equilíbrio econômico toma por base o princípio constitucional da solidariedade e a igualdade considerada na perspectiva material com vistas à realização dos fins visados pelas partes na forma convencionada e produzindo os efeitos colimados.

O princípio da função social do contrato resulta da metódica da funcionalização, socialização e constitucionalização do direito, consagrando a dimensão social do contrato, articulando interesses individuais e coletivos, contemplando, assim, a possibilidade da realização da justiça social dos pactos

A fragmentação da teoria contratual e o paradigma da essencialidade, destacando o respeito à dignidade e as necessidades humanas, reforça o distanciamento em relação ao individualismo pretérito em benefício da tendência coletivista das relações contratuais, objetivando concretizar a dignidade da pessoa contratante.

Cabe ao julgador assegurar a justiça e previsibilidade das decisões considerando à complexidade dos pactos, individuais ou coletivos, tomando por fundamento as diretivas da nova ordem negocial.

 

5. Referências

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STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica, Constituição e Autonomia do Direito. Revista de Estudos Constitucionais, Hermenêutica e Teoria do Direito (RECHTD)1 (1):65-77 janeiro-junho 2009.

STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica Jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do direito. 4ª ed. Porto Alegre, Livraria do Advogado, 2003.

1 MARTINS-COSTA, Judith. Crise e modificação da idéia de contrato no direito brasileiro. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, v.3, set./dez. 1992, p. 141, apud Gustavo Tepedino (coordenador) – Problemas de direito constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 177.

2 Esta reflexão esteve inspirada pela constatação de que as regras de muitos mercados (ou a ausência delas) permitem situações moralmente repugnantes, como o espetáculo de crianças trabalhando até o esgotamento em troca de um salário miserável; ou politicamente recusáveis, como o sacrifício de milhões de pessoas no altar dos índices macroeconômicos. Estas coisas sucedem enquanto nos mercados de ações as “normas de conduta” e os controles administrativos se multiplicam para permitir um jogo limpo que possibilite iguais oportunidades para todos. Os mercados são, como se vê, o que queiramos fazer deles: um instrumento para o bem-estar e a liberdade, ou um meio refinado para a imoralidade e o sofrimento. Minha contribuição somente pretende sugerir que este não é um problema econômico, mas, acima de tudo, ético e político. (tradução livre)

Jussara Suzi Assis Borges Nasser Ferreira

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