Direito marítimo, pré-sal e sustentabilidade

Com as descobertas das reservas de petróleo na zona do “pré-sal”, o Brasil será considerado a quarta maior reserva de petróleo do mundo e poderá se tornar uma grande potencia mundial. Diante destas perspectivas, várias questões relacionadas ao desenvolvimento sustentável e a segurança marítima assumem extrema relevância no contexto econômico e desenvolvimentista.

Em termos globais, consagra-se a premissa que desenvolvimento sustentável enseja transportes seguros e sustentáveis. Consubstanciado nos conceitos básicos de sustentabilidade, tem-se propugnado que o conceito de transporte ambientalmente sustentável abrange o transporte que atende às necessidades de mobilidade de forma consistente com o uso de recursos renováveis sem causar risco a saúde pública ou ecossistemas.

Ante a singularidade do tema, a relação entre transporte marítimo e desenvolvimento sustentável é múltipla e complexa. Evidentemente, a segurança marítima engloba algumas vertentes extremamente relevantes relacionadas ao meio ambiente e ao conceito sistêmico de sustentabilidade que se traduz num modelo de desenvolvimento global incorporado aos aspectos ambientais.

Sob a égide do transporte marítimo sustentável são englobadas várias vertentes relacionadas ao domínio marítimo e soberania e jurisdição, emissões de dióxido de carbono, a exploração e transporte de petróleo e gás e demais atividades da industria naval em geral, dentre outras.

Insere-se, neste contexto, que o transporte marítimo ambientalmente sustentável envolve duas premissas de referência no presente estudo: i) a intensificação do tráfego de petroleiros no Brasil em face a exploração e transporte de petróleo do “pré-sal e ii) a efetividade do quadro normativo brasileiro.

Na aferição concreta, evidenciam-se, neste ínterim, várias temáticas atinentes ao transporte marítimo sustentável relativas à poluição marinha causada por navios, em essencial os acidentes com derrame de petróleo e de produtos químicos, a poluição por emissão de dióxido de carbono, as descargas operacionais, a lavagem de tanques dos navios e as águas de lastro. Todavia, inobstante a constatada complexidade e abrangência temáticas, em termos de impacto, as causas da poluição marinha mais relevantes resultam de acidentes que envolvem derramamento de petróleo. Anualmente, estima-se derramamento de 1 milhão de toneladas de petróleo e derivados no mar.

Destaca-se, pela relevância dos efeitos e do impacto ambiental, a seguinte cronologia das marés negras ocorridas no mundo, incluindo o nome do navio, a nacionalidade, o acidente e o derrame: Petroleiro Torrey Cânion (1967), derramamento de 123 mil toneladas de petróleo; Amoco Cadiz (1978), derramamento de 230 mil toneladas de crude.Exxon Valdez: (1989) derrame de 41 mil toneladas.no Alasca (EUA) ; Haven (1992), derrame de 144 mil toneladas de petróleo; Sea Empress (1996), derrame de cerca de 70 mil toneladas de petróleo; Érika (1999), 20 mil toneladas de petróleo bruto Prestige (2002), cerca de 20 mil toneladas de petróleo.

Em decorrência de tais acidentes e dos respectivos efeitos, uma série de medidas emanadas, fundamentalmente, da Organização Marítima Internacional (OMI) foram implementadas, visando à elevação dos padrões de segurança da navegação em todas as suas vertentes.

Os derrames de grande proporção decorrentes de acidentes da navegação, comumente denominados de marés negras,  e as diversas catástrofes ecológicas ensejaram a adoção de inúmeras e relevantes normativas. De fato, nos últimos 40 anos emanam, progressivamente, normativa ambiental internacional cada vez mais ampla.

No contexto regulamentar internacional, é importante destacar algumas peculiaridades do sistema normativo americano, da União Européia e a efetividade do sistema normativo brasileiro.

Em 1989, com os impactos ambientais provocados pelo acidente com o Exxon Valdez,  os EUA adotaram em 1990 o “Oil Pollution Act” (OPA 90 unilateralmente requisitos de casco duplo não só para os petroleiros novos, como também para os demais, estabelecendo limites de idade (entre 23 e 30 anos, a partir de 2005) e prazos-limite (2010 e 2015) para a retirada de serviço das embarcações de casco simples.

Em decorrência desta medida unilateral dos americanos, a OMI foi forçada a intervir, estabelecendo em 1992 requisitos de casco duplo na Convenção Internacional para a Prevenção da Poluição por Navios (Marpol). A Marpol exige que todos os petroleiros de porte bruto igual, ou superior, a 600 toneladas, construídos para entrega depois de julho de 1996, tenham casco duplo, ou configuração equivalente. Por conseguinte, não há petroleiros de casco simples deste porte construídos depois dessa data.

Em relação aos petroleiros de casco simples de porte bruto igual, ou superior, a 20 mil toneladas entregues antes de 6 de julho de 1996, a Marpol exige que satisfaçam os requisitos de casco duplo quando atinjam a idade de 25 ou 30 anos, estejam ou não equipados com tanques de lastro segregado. O objetivo desse equipamento é reduzir os riscos de poluição operacional, assegurando que a água de lastro nunca entre em contato com hidrocarbonetos. Esses tanques têm, além disso, localização protetiva. Estão instalados nas zonas em que o impacto de um encalhe, ou colisão, pode ser mais grave.

Com efeito, considerando a virtual impossibilidade de transformar um petroleiro de casco simples em um de casco duplo e o fato de os limites de idade especificados coincidirem, na prática, com o fim da vida útil de um petroleiro, tanto o sistema normativo americano quanto a Marpol ensejam a retirada dos petroleiros de casco simples. As diferenças detectadas nos sistemas americano e internacional apontam como conseqüência que, a partir de 2005, os petroleiros de casco simples banidos das águas americanas devido à sua idade começaram a operar em outras regiões do mundo, o que aumentou o risco de poluição nos países que seguem apenas os requisitos da Marpol, como é o caso do Brasil. Esta foi uma das causas apontadas pela União Européia na revisão e adoção de regras mais rígidas que a normativa internacional em matéria de segurança marítima e derramamento de petróleo, nos termos de análise a seguir.

A União Européia, efetivamente, se encontra na vanguarda da segurança marítima. O naufrágio do petroleiro Erika marcou o ponto de partida para novos avanços na execução da política comunitária de segurança marítima. Em decorrência dos graves impactos ambientais causados pelo desastre, a União Européia instituiu os Pacotes Erika I e II. Uma das medidas mais significativas constantes do Pacote Erika I referia-se ao banimento progressivo dos petroleiros de casco simples, que serão substituídos, no mais tardar até 2015, por navios de casco duplo. Além disso, os Pacotes Erika preconizavam as seguintes medidas:

  1. acompanhamento de navios que transitam em águas européias, sem prejuízo do direito de passagem inocente;
  2. estabelecimento de fundo de compensação suplementar para indenização das vítimas de derrames em águas européias (Fundo Cope);
  3. criação da Agência Européia de Segurança Marítima (Lisboa, 2003);
  4. implementação de medidas adicionais para transporte de petróleo;
  5. introdução de sistema de reconhecimento de certificados profissionais de marinheiros emitidos fora da UE;
  6. solicitação de relatórios aos pilotos;
  7. implementação de medidas de proteção às águas costeiras e alteração das normas Port State Control;
  8. estabelecimento de locais de refúgio;
  9. implementação de parcerias com a indústria petrolífera.

Alguns meses após a adoção dos pacotes Erika I e II, ocorreu o desastre com o petroleiro Prestige. Na seqüência do naufrágio, em novembro de 2002, foram antecipadas e intensificadas as alterações decorrentes dos pacotes Erika, no chamado Pacote Prestige.

Dentre as medidas, está um calendário de banimento dos petroleiros de casco simples a partir de 2005, ao passo que os menores e mais recentes deixarão de poder navegar nas águas comunitárias a partir de 2010. Foi igualmente decretada a imediata proibição de utilização dos petroleiros de casco simples destinados a transportar óleos pesados com destino, ou em proveniência, de portos comunitários. Outras medidas do Pacote Prestige incluem requisitos de construção de petroleiros e implementação da avaliação do estado da estrutura do navio. Destacam-se, em especial, as Diretivas 2002/84/CE e 2001/106/CE e Regulamento (CE) 2099/2002, 417/2002, 1726/2003 e 2172/2004.

No que tange ao sistema brasileiro, a legislação pátria é considerada de vanguarda e recepciona as mais importantes convenções internacionais em matéria de segurança marítima. A legislação ambiental brasileira, em geral, contempla possibilidades de preservação da qualidade ambiental, prevendo instrumentos preventivos, corretivos e compensatórios relativos a conseqüências decorrentes de intervenções na base de recursos naturais e ambientais do país.

O Brasil é membro da OMI e signatário das principais convenções mundiais que norteiam as regras de segurança marítima e de prevenção da poluição marinha. Dentre as convenções das quais o Brasil é signatário se destacam:

  1. Convenção Internacional sobre Responsabilidade Civil em Danos Causados por Poluição por Óleo, 1969 (Decreto Legislativo nº 74 de 30.09.76);
  2. Convenção Internacional sobre Responsabilidade Civil em Danos Causados por Poluição por Óleo (International Convention on Civil Liability for Oil Pollution Damage – CLC), Bruxelas, 1969,  promulgada pelo Decreto nº 79.437 de 28.03.77;
  3. Convenção de Basiléia Sobre o Controle de Movimentos Transfronteiriços de Resíduos Perigosos e seu Depósito, 1989, aprovada pelo Decreto Legislativo nº 34 de 16.06.92 e  promulgada pelo Decreto nº 875 de 19.07.93;
  4. Convenção Internacional sobre a Responsabilidade Civil em Danos Causados por Poluição por Óleo (regulamentada pelo Decreto nº 83.540, de 04.06.79);
  5. Convenção sobre Prevenção de Poluição Marinha por Alijamento de Resíduos e Outras Matérias (com emendas), Londres, Cidade do México, Moscou, Washington, 1972 (aprovada no Brasil pelo Decreto Legislativo nº 4/87 e promulgada pelo Decreto nº 2.508 de 04.05.98, com a adoção dos protocolos e de todos os anexos);
  6. Convenção Internacional para a Prevenção da Poluição Causada por Navios (Marpol), Londres (OMI), 1973 (aprovada no Brasil pelo Decreto Legislativo nº 4/87 e promulgada pelo Decreto nº 2.508 de 04.05.98, com a adoção dos protocolos e de todos os anexos).
  7. Protocolo de 1978, relativo à Convenção Internacional para a Prevenção da Poluição Causada por Navios (Marpol), Londres (OMI), promulgada pelo Decreto nº 2.508/98, da mesma forma que o mencionado no item anterior (este protocolo e a convenção mencionada no item anterior são conhecidos como Convenção Marpol 73/78, ou Convenção Marpol).
  8. Convenção Internacional sobre Preparo, Prevenção, Resposta e Cooperação em Caso de Poluição por Óleo, Londres (OMI), 30 de novembro de 1990 (Convenção OPRC, assinada pelo Brasil em 3 de abril de 1991 e promulgada pelo Decreto nº 2.870 de 10.12.98).

Destacam-se, ainda, e especificamente a acidentes ambientais e derrames a Lei nº 9.605/98 (Lei de Crimes Ambientais); a Lei nº 9.966/00 (Lei do Óleo), regulamentada pelo Decreto nº 4.136/02; a Lei nº 9.537/97 (Lei da Segurança do Tráfego Aquaviário – Lesta), regulamentada pelo Decreto nº 2.596/98 (RLesta) e as Normas da Autoridade Marítima (Normam) 1, 3, 4 (Port State Control), 6 e 20 (água de lastro). Ademais, encontram-se em trâmite  dois projetos de lei (PL) em trâmite, extremamente relevantes:  nº 4.296/01 e PL nº 6.770/02.

Em suma, o PL nº 4.296/01 propõe alteração na Lei nº 9.966/00 e a desativação gradual de navios de casco simples que transportam petróleo e derivados nas águas de jurisdição nacional. Tem por objetivo, também, impedir o trânsito em águas brasileiras de embarcações que já não possam operar em águas norte-americanas – apensado ao PL nº 1.616/1999 e ao PL nº 3.438/2004. O PL nº 6.770/02, em apenso ao PL nº 6874/2002, dispõe sobre a aplicação dos recursos da Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico (Cide) e cria o Fundo Nacional de Infra-Estrutura de Transportes (FNit).

No Brasil, já ocorreram vários acidentes. Todavia, nenhum deles provocou impacto tão significativo no meio marinho como os anteriormente destacados. O de maior impacto ambiental foi o do NT Vicuña, ocorrido em 15 de novembro de 2004. O navio de bandeira chilena explodiu três vezes e naufragou, provocando derrame de aproximadamente 4 mil toneladas de três tipos de combustível, principalmente metanol, na baía de Paranaguá (PR).

Especialistas destacaram diversas deficiências significativas de controle e prevenção de acidentes que possam vir a ocorrer no Brasil e o acidente com o NT Vicuna serve de indicativo para possível revisão de normas e medidas consubstanciadas no princípio da precaução.

Da análise do acidente com o NT Vicuña e da rigidez dos sistemas normativos da UE e dos EUA, emergem algumas preocupações extremamente relevantes no que concerne a possíveis acidentes de natureza grave que possam vir a ocorrer em águas brasileiras, principalmente face a intensificação do transporte marítimo de petróleo e derivados extraídos da zona pré-sal.

Nos termos de análise precedente, verificou-se que as regras européias e norte-americanas atinentes à segurança marítima e ao derramamento de petróleo são significativamente mais rígidas que as normas internacionais.

Em decorrência desta rigidez normativa, a restrição de tráfego de navios na UE e nos EUA tende a  intensificar a utilização de navios antigos e sem casco duplo em outros países que possuam normas mais lenientes, como é o caso do Brasil, cuja normativa segue os padrões internacionais advindos, essencialmente, da Marpol, do Oilpoil e CLC/69. Embora a normativa brasileira seja considerada moderna e severa, infere-se que leis que amparam penas severas são ineficazes se destituídas de mecanismos de fiscalização de seu cumprimento.

Revela-se, assim, a importância de análise mais acurada do panorama da sustentabilidade e segurança marítima no Brasil, com a necessidade de revisão do sistema normativo nacional e de metodologia de prevenção e controle consubstanciados, essencialmente, no Princípio da Precaução. 

O Princípio da Precaução foi utilizado pela primeira vez no direito ambiental alemão (Vorsorgeprinzip) na década de 70. Consoante preceitos do Princípio, a precaução se baseia na experiência em matérias técnicas e científicas. O Estado deve dotar-se de meios de prevenção de surgimento de danos antes mesmo de existir certeza da existência de risco e implementar sistema de pesquisa que detecte riscos para o ambiente. O princípio impõe às autoridades a obrigação de agir diante de uma ameaça de dano irreversível ao meio ambiente, mesmo que conhecimentos científicos até então acumulados não confirmassem o risco.

A título de parâmetro de análise, e sem a pretensão de apresentar um elenco taxativo, evidenciam-se as seguintes questões, a título de mera recomendação.

Primeiramente, destaca-se a necessidade de revisão da política pública da segurança marítima brasileira. A política da viabilidade ambiental do sistema de transporte marítimo, principalmente de petróleo e derivados, deve ser pautada nos princípios da precaução e da preservação do meio ambiente e do desenvolvimento sustentável.

Concomitantemente, é importante proceder à revisão da normativa relativa à segurança marítima, em essencial, a legislação relativa a poluição marinha por derramamento de petróleo e possível adoção de regras mais severas que as normas internacionais, com observância dos paradigmas dos sistemas da UE e dos EUA assim como a legislação atinente à  adoção de registro nacional e implementar mecanismos de incentivo à frota mercante nacional. Ademais, deve analisar o Brasil a possibilidade de  implementação imediata de algumas medidas, como possível adoção de lista negra de navios, a exemplo da elaborada pela Comissão da UE; maior rigor nas exigências quanto à inspeção dos navios que transitam em águas brasileira e implementação de sistema de controle e gestão de tráfego marítimo que permita monitoramento permanente de navios, sem prejuízo do direito de passagem inocente. E, ainda neste cenário, destacam-se as seguintes questões:

  1. Implementação de monitoramento dos navios de bandeira de conveniência (BDC) tendo em vista que as maiores mares negras tem sido causadas por navios de BDC;
  2. Detectar regiões de risco potencial; levantamento e avaliação de equipamentos e planos estratégicos de controle e prevenção de acidentes de grande proporção assim como aperfeiçoamento e atualização dos planos de emergência.
  3. Intercâmbio de experiências e informações entre entidades com competência e responsabilidades no âmbito do combate à poluição: Marinha, Anvisa, Ibama, Antaq, ANP, Polícia Federal, Corpo de Bombeiros e ministérios do Meio Ambiente e dos Transportes, dentre outros.

Efetivamente, no País do “pré-sal”, propugna-se ser indispensável  a implementação de políticas e de planejamentos relacionados ao transporte marítimo de petróleo e derivados assim como revisão do quadro regulamentar. Deve-se, contudo, consolidar a premissa de que o que falta no sistema brasileiro, considerado de vanguarda, não é produção de legislação, mas sim sua efetiva aplicação e cumprimento. Evidencia-se que o equilíbrio entre a estratégia para o desenvolvimento da indústria naval “vis a vis” a sustentabilidade parece constituir o paradigma da síntese ideal da competitividade.

 

 

 

Eliane M. Octaviano Martins

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