Me lembro como se fosse hoje. Era uma segunda-feira, caía uma garoa fina, dessas de molhar os ossos e acabar com o seu dia. Eu saía pro trabalho (como sempre, atrasada!) depois de grudar na geladeira o script do dia para a empregada, deixar o filho no colégio, revisar mentalmente o plano de aulas e responder pelo iphone algumas centenas de e-mails de trabalho. Assim que o portão da garagem se fechou, reparei que o muro defronte à minha casa amanhecera pichado. O “artista” — foi só a partir desse dia que passei a emprestar a certos pichadores de muro o epíteto de “artista” — tinha feito uma paisagem simples. Na verdade, apenas um degradê de azul representando um céu calmo, que tomava toda a extensão de um muro caindo aos pedaços. Num cantinho, escreveu com tinta preta: “O essencial é invisível aos olhos”.
Essa frase, que eu já conhecia das leituras de Saint-Exupéry, não me saiu mais da cabeça. Fui pelo caminho pensando na profundidade da mensagem, e de quantas vezes olhamos tudo pela superfície. Olhamos com os olhos, e não com o coração. Isso nunca me ocorrera antes. Tá certo que o grafite deixou o muro muito mais bonito, e a frase, que ficou martelando na minha cabeça o dia inteiro, me ajudava a pensar enquanto encarava o trânsito. Mas, e o proprietário do terreno? Teria autorizado o grafite? Com que direito o grafiteiro decidira mudar a cara da paisagem e botar ali a sua frase preferida? E se o dono do muro não gostasse de filosofia? E se nunca tivesse lido Saint-Exupéry? E se a frase não lhe tocasse o coração? Assim, como todos os que lidam com as coisas do direito, comecei imediatamente a pensar se, abstraída a beleza do traço, e a profundidade da frase, aquele grafite era arte, vandalismo, crime ambiental, invasão da propriedade alheia.
Para quem lida com o direito, decidir se grafite é arte ou crime ambiental exige certa prudência, e olhos para ver. Por meio do grafite, o artista manifesta a sua liberdade de expressão, mas como todas as outras formas de exteriorização dessa expressão há limites para o grafite. O limite mais óbvio é que o grafite não pode interferir na paisagem urbana para agredir, fazer apologia de crime, acirrar racismo, aprofundar o culto à discriminação ou ao ódio. Outra coisa é definir o espaço onde o grafite é feito.
A expressão “grafite”, do italiano graffiti, plural de grafito, é o nome que se dá a inscrições — desenhos pintados ou gravados ou inscrições caligrafadas — feitas nas paredes de casas ou prédios, lugares públicos, muros, calçadas ou asfalto. O grafite difere da pichação por ser mais bem elaborado, com maior riqueza de detalhes, cores e alguma mensagem subliminar. A pichação em rigor não é nada, senão o produto do ímpeto de alguém em inundar um espaço com a sua marca, a marca do seu gueto, a sua irreverência ou mania de destruir o espaço urbano. Ainda que com muitas reservas, o grafite é visto hoje como uma variação da “art street”, arte urbana, ou arte das ruas, e não mais como vandalismo. Numa palavra: pichação é ato de conspurcar, sujar, poluir; o grafite traz embutida uma mensagem, algo que o artista quer externar e, por qualquer razão, não pode fazê-lo por meio das artes convencionais. Mas ainda aqui é preciso separar o joio do trigo.
O grafite passou a ganhar voz a partir do movimento de contracultura de maio de 1968, em Paris, quando os muros da capital francesa passaram a ser manchados com inscrições de caráter político. Associado à música de rua — basicamente o hip-hop e o rhythm and persons, o “rap”—, o grafite jamais perdeu o seu viés histórico de arte de transgressão: uma onda de insubmissão da pessoa contra a opressão do espaço público. Um dos mais famosos grafiteiros foi o francês Jean-Michel Basquiat. No final dos anos 70, Basquiat atraiu os olhares da imprensa novaiorquina para a poesia do seu grafite ao dar vida aos prédios abandonados de Manhattan.
O art.65 da L.nº 9.605/98(Lei de Crimes Ambientais) não diferençava grafite de pichação. Até então, a grafitagem era crime de dano prevista do art.163 do Código Penal e impunha reparação(Código Civil, art.s 186 e 927). Procurava-se a proteção ao meio ambiente visual e cultural. A L.nº 12.408/11 descriminalizou a grafitagem dando-lhe valor de manifestação artística, mas proibindo a venda das tintas a menores de dezoito anos. Com a L.nº 12.408/11, o art.65 da L. nº 9.605/98 passou a viger com a seguinte redação:
Art. 65. Pichar ou por outro meio conspurcar edificação ou monumento urbano: Pena – detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, e multa.
§1º – Se o ato for realizado em monumento ou coisa tombada em virtude do seu valor artístico, arqueológico ou histórico, a pena é de 6 (seis) meses a 1 (um) ano de detenção e multa.
§2º- Não constitui crime a prática de grafite realizada com o objetivo de valorizar o patrimônio público ou privado mediante manifestação artística, desde que consentida pelo proprietário e, quando couber, pelo locatário ou arrendatário do bem privado e, no caso de bem público, com a autorização do órgão competente e a observância das posturas municipais e das normas editadas pelos órgãos governamentais responsáveis pela preservação e conservação do patrimônio histórico e artístico nacional.
Em resumo: se o grafite é feito numa propriedade particular, com a autorização do proprietário, perde a característica de invasão de propriedade, mas, ainda assim, pode constituir crime ambiental se deteriorar o fim social da propriedade, poluir visualmente o ambiente ou comprometer de alguma forma a vida em sociedade, como, por exemplo, levar os motoristas a se distraírem na direção, aumentando o risco potencial de acidentes. Se é feito às escondidas, contra a vontade do senhorio, é crime de invasão. O grafite feito em imóvel público também comporta digressão. Em tese, se o bem público grafitado tem valor cultural, arqueológico ou histórico, nenhum grafite pode ser autorizado porque a arte acessória do grafite agrega ao bem de valor histórico um valor que não condiz com a sua natureza. Se o bem público não é dessa natureza— isto é, não tem valor cultural, arqueológico ou histórico—, e o grafite é autorizado, ainda assim é preciso ver se o poder público podia ou não autorizar o exercício desse tipo de arte sobre um bem ou superfície que, originariamente, tem outra matriz cultural. O grafite pode coincidir com o gosto pessoal do administrador, o que não significa que deva agradar aos outros titulares imaginários desse bem, isto é, as pessoas a quem essa arte afetará potencialmente.
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