No livro “A Revolução dos Bichos”, George Orwell conta uma fábula interessante. Os bichos de uma fazenda inglesa, cansados dos maus-tratos do proprietário, decidem fazer uma revolução. Depois de uma dura batalha, tomam o controle da propriedade. Reúnem-se no estábulo e escrevem na parede de tábua o decálogo do novo governo. Dentre as novas regras, estava uma: “Todos os animais são iguais”. Com o tempo, os porcos traem os ideais da revolução e começam a confiscar o melhor leite, as maçãs mais doces, bebem uísque, andam sobre duas patas, usam botas, negociam lenha com os fazendeiros vizinhos, jogam pôquer e passam a usar chicotes para impor a ordem entre os colegas. Com uma vaga lembrança de que isso era proibido pela cartilha da revolução, os animais voltam ao estábulo para conferir as leis que escreveram no dia daquela batalha histórica. Ali estava, em meio à poeira, o lema principal: “Todos os animais são iguais”. Mas alguém, na calada da noite, acrescentara: “mas alguns são mais iguais que os outros”.
Todo mundo quer uma sociedade justa e igualitária. Todo mundo diz que todos são iguais perante a lei, mas ninguém desconhece que alguns são mais iguais que os outros. Ricos e brancos não vão para a cadeia. Cadeia é lugar de preto e pobre.
Quando isso vai mudar?
Isso só vai mudar quando as pessoas, voluntariamente, se despirem dos seus privilégios e tratarem-se como iguais. Ou, como o disse John Donne, a dor de um só será verdadeiramente sentida quando doer em todos.
Li ainda ontem que o TJ do Rio de Janeiro condenou uma empresa de ônibus a pagar indenização de R$12 mil por danos morais a uma passageira obesa que ficou presa na catraca.
Pergunto: houve mesmo dano moral? A empresa tinha mesmo de alargar a catraca à espera da passageira gorda? Nesse caso, as poltronas também teriam de ser afastadas? Qual o limite do exercício da cidadania?
Se o direito de um termina onde começa o do outro, onde está o direito da empresa de trafegar com os veículos, que ela não fabrica, e que estão, segundo as autoridades e as normas técnicas, nos limites da razoabilidade?
Não há um pouco de exagero nisso? Penso que sim. Ninguém está percebendo que quanto mais se exige exclusividade, singularidade, tratamento diferenciado e personalíssimo, mais a sociedade se fragmenta, se rarefaz, mais as pessoas se isolam em seus guetos particulares e deixam de cultuar o que é mais sagrado: o jardim da sua própria afetividade. Não podemos perder de vista que a sociedade moderna é invasiva por excelência. Não estamos numa oca, numa vila, num lugarejo, mas numa comunidade plural, multifacetada, e aceitar o exercício da diferença é, por certo, o maior desafio de quem vive em coletividade. Já disseram ― não me lembro quem nem onde ― que quando a igualdade me prejudica, exijo a diferença; quando a diferença me discrimina, exijo a igualdade. Mas para tudo há limites. Tudo, hoje em dia, desemboca numa famigerada ação por dano moral. Há uma indústria enriquecendo os bolsos de clientes e advogados e tornando a sociedade uma zona de guerra onde vence o mais ardiloso.
Dano moral é todo prejuízo íntimo que decorre de uma situação anormal, fora do cotidiano, que causa a uma pessoa um aborrecimento acima do razoável para quem vive em sociedade. Eu sei, eu sei, todos esses conceitos são voláteis, sem formatação razoável, mas é com eles que o jurista raciocina e decide. Quem é obeso, quem se sabe obeso, obviamente não desconhece que a sociedade produz os seus equipamentos para um grupo de pessoas que não tem as mesmas conformações físicas. O que não se pode fazer é com que o mundo e as coisas se acomodem às suas medidas, às suas possíveis limitações. Não estou insinuando que uma pessoa obesa não deva ser ressarcida se a sua obesidade é alvo de chacota, de humilhação. Não é isso. O que estou dizendo é que se entalar numa roleta feita para o homem médio é um acontecimento previsível para uma pessoa obesa. Cabe a ela contornar o incidente com jeito, com criatividade e fair-play.
Uma indenização por dano moral deferida nessas circunstâncias tem um efeito duplamente perverso: estimula a indústria do dano—e os tribunais estão repletos de casos assim—e mostra ao homem comum que todos são iguais perante a lei, mas alguns são mais iguais que os outros.
Convido a uma reflexão: que tal não banalizarmos o preço da dor?
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