“De tanto ver triunfar as nulidades, de tanto ver prosperar a desonra, de tanto ver crescer a injustiça, de tanto ver agigantarem-se os poderes nas mãos dos maus, o homem chega a desanimar da virtude, a rir-se da honra, a ter vergonha de ser honesto.”
Rui Barbosa
Existe uma sorte no jogo de xadrez a que os jogadores acodem quando a situação se torna desesperada. Trata-se de deixar ao rei como única peça suscetível de ser jogada mas que, sem sofrer xeque, tão pouco conta com alternativa alguma porque, ao mover-se, faça o que fizer, cairá em uma posição na qual será devorado. Em contra do que possa parecer, isso não é um xeque-mate porque não há xeque. Muito pelo contrário, a situação de “afogado” se traduz em empate (por “afogamento do rei”).
Se o mundo das reivindicações (sociais, políticas, salariais, etc.) fosse o do xadrez, o afogado viria a supor algo assim quando alguém, em uma situação complicada, intenta qualquer recurso ou meio com tal de obter o que se pretende, uma esperança remota para os mais débeis que costumam contar, por outra parte, com a simpatia que geram os perdedores. O problema é que determinadas reivindicações não funcionam como artefatos poéticos em que o importante seja sacar forças do nada. Quando se leva a cabo um tipo de reivindicação justificada, o que realmente importa é por de manifesto de que forma, com que meios, a partir de que estratégias e até onde se está disposto a chegar para lutar por um direito legítimo.
O denominado Dia Nacional de Valorização da Magistratura e do Ministério Público, ocorrido no dia 21 de setembro e que teve por objetivo chamar a atenção do Congresso Nacional e do governo para questões como uma política remuneratória que recomponha as perdas inflacionárias e um sistema de saúde, previdência e segurança adequado, colocou sobre a mesa uma espécie de arte de magia que recorda bastante a situação do mate “afogado”. Ante a prática impossibilidade de convencer, pelas vias constitucionais e legais pertinentes, o Poder Executivo e o Legislativo sobre a legitimidade e a necessidade de revisão dos subsídios da Magistratura e do Ministério Público, o que se tratou de demonstrar foi que, ao borde do naufrágio, nada mais civilizado que mostrar uma indignação pública, fazer-se notar e clamar por novas vias de diálogo. E embora ninguém ponha em dúvida a nobreza da iniciativa e de seu objetivo, o certo é que, apesar da “grandiosidade do movimento, o executivo não se sensibilizou” e, o que é pior, não deixou (aparentemente) mais lugar algum em que refugiar-se dialógica e “pacificamente”. Mate “afogado”.
Resultado: “operação-padrão” por parte dos juízes, dissidências internas e divergências de opiniões e posturas quanto as estratégias a serem adotadas pelos afetados e nova convocatória de greve/paralisação. Nada surpreendente. Os juízes se sentem muito ofendidos porque o desprestígio público cai sobre eles e se rompem descaradamente todas as regras do jogo constitucional.
Pois bem, muito embora não esteja pessoalmente contra nenhuma medida legítima e eficiente destinada a remover a estapafúrdia e intransigente postura adotada pela atual “(m)ama do poder”, considero de especial relevância e sensatez, neste momento, considerar outras vias mais eficazes e virtuosas de comprometer-se, indignar-se e resistir ao inaceitável.
Sejamos sérios. Em um País em que certa cultura de docilidade, de submissão, de resignação, de interferência arbitrária, de impotência e de conformismo parece ser a regra, posturas como as propostas e adotadas até o momento (“operação-padrão”, greve, paralisação, movimento nacional) ressoam como socialmente antipáticas, feias e até certo ponto incompreensíveis. Ademais, para o bem ou para o mal, a crença popular está abarrotada de imagens acerca da prudência, imparcialidade ou justiça associadas intimamente à figura do juiz, “acaso con mayor intensidad que respecto de cualquier otro ícono circulante en el imaginario de nuestra cultura” (Kennedy, 2010), um fato que, em situações como essa, não parece sensato desconsiderar, sob pena de correr-se o potencial risco da própria sociedade passar a considerar os juízes (e membros do MP) como um personagem mais do circo em que se converteu nosso atual Estado de Direito.
Indignar-se é, sem dúvida alguma, um valor precioso. Qualquer um pode indignar-se e rebelar-se, isso é muito simples. Mas, usando a Aristóteles (1970), indignar-se e rebelar-se no grau exato, no momento oportuno, com o propósito justo e do modo correto, isso, certamente, não resulta tão simples. Para lográ-lo, o realmente importante parece ser desenhar estratégias ou meios adequados, honrados e inteligentes que não somente coincidam com os fins buscados senão que também tenham um valor próprio ou um fim em si mesmo, isto é, uma estratégia (ou meio) que valha a pena realizá-la por si mesma.
Um bom exemplo de meio adequado e inteligente é o dos trabalhadores de uma fábrica de sapatos da pequena cidade de Viareggio, na Itália. Depois que os donos da fábrica se negassem categoricamente a atender suas reinvindicações, decidiram atuar “a la italiana”: em lugar de declarar-se em greve, eles responderam com um aumento da produtividade, só que começaram a produzir sapatos apenas para o pé esquerdo. Quando nos armazens da empresa não tinha mais espaço para armazenar os novos sapatos (sempre do pé esquerdo), os donos da empresa se renderam.
A inclinação esquerda da produção da fábrica de sapatos de Viareggio, no caso particular dos juízes, bem poderia corresponder a um estilo de atuação institucional destinada (ou intensificada) exclusivamente, mediante esforço conjunto e ação coordenada, a um combate implacável, em grau absoluto e inegociável de tolerância zero, contra o monstruoso fantasma da corrupção, esse “câncer metastático” de que padece o Estado brasileiro: de servidores a promotores, de auditores a vereadores e senadores, de advogados a deputados e magistrados, de empresários a funcionários e agentes políticos, de defensores a procuradores, de ministros a presidente…, enfim, de todos os que perdem deliberadamente a oportunidade de trabalhar dignamente e por motivos mais nobres.
Estou seguro que uma postura dessa natureza, a que chamo “greve virtuosa”, não geraria nenhum tipo de desacordo entre os interessados ou, pelo menos, não daria motivos para os mais conformados lamentarem ou proclamarem a ilegalidade da “greve”. Afinal, há algo que possa resultar mais desgarrado e nocivo, em termos de administração pública, que “desanimar da virtude, rir-se da honra, ter vergonha de ser honesto”? Quem, em seu sano juízo, se mostraria tão indiferente à corrupção pública a ponto de denunciar publicamente a ilegalidade de uma “greve” dessa natureza? Quanto tempo tardará a sociedade para entender que a pobreza, a ignorância, a “decadência” do sistema de ensino e saúde pública e as desigualdades não são meramente males em si mesmos, senão uma consequência direta do desbarate egoísta e malicioso dos recursos públicos?
Desacreditar esse tipo de iniciativa de “greve virtuosa” se converteria, depois de tudo, em uma bandeira defendida curiosamente por aqueles que parecem não ter (ou se negam a ter) uma dimensão real das cifras de escândalos sobre corrupção que quase diariamente assolam o País ou do perigo que representa para uma democracia quando um regime tendencialmente autoritário e manifestamente populista ocupa todos os espaços e obriga ao Judiciário a humilhar-se ante o Executivo.
O “problema” é que tudo depende, evidentemente, da disposição e valentia dos que efetivamente dispõem das condições institucionais favoráveis para tanto: os juízes e os membros do Ministério Público. De não ser indiferentes ao cinismo político que trata de despolitizar e/ou não priorizar o combate ao fenômeno da corrupção pela via da banalização inespecífica: não há um problema de corrupção política, distinto do problema da corrupção administrativa, distinto do problema da corrupção econômica privada, etc. Simples consolo para políticos, servidores e funcionários públicos corruptos (ou irresponsáveis) e pretexto para os protestos de agudeza de jornalistas e colunistas de grandes revistas semanais.
E o mais grave é que esses atos de autêntica “maldade administrativa” são praticados por indivíduos “terrorífica y terriblemente normales”: indivíduos que se crêem não só líderes políticos senão morais, que oram e vão à igreja (ou templos), que amam seus filhos e suas mulheres, que frequentam clubes e festas sociais, etc. Poderia inclusive dizer-se, repetindo a Hannah Arendt (1994), que desde o ponto de vista de “nuestras instituciones jurídicas y de nuestros criterios morales, esta normalidad resulta mucho más terrorífica […], por cuanto implica que este […] tipo de delincuente […] comete sus delitos en circunstancias que casi le impiden saber o intuir que realiza actos de maldad”.
Portanto, talvez esta seja a oportunidade histórica de aproveitar um movimento “grevista” para lutar contra e eliminar este tipo de prática perversa, a despeito das boas intenções, dos interesses corporativos e/ou políticos em jogo; para tratar de restabelecer a confiança, a virtude e a honradez pública de um Estado impotente e ineficaz, que continua a distribuir de forma tão grosseiramente desigual recursos, oportunidades e riqueza, e de forma tão incivil como escassa liberdade, assistência sanitária e segurança pública. Como recorda Frei Betto (2011) ao falar sobre a corrupção brasileira, “las instituciones deben ser suficientemente fuertes, las investigaciones rigurosas y los castigos severos. La impunidad hace al delincuente. Y en el caso de los políticos a ésta se le añade la inmunidad”.
Parece haver chegado o momento de rebaixar a guarda do silêncio, aceitar que, às vezes, fazer “greve” pode ser um mecanismo eficaz para atuar em benefício da sociedade e do Estado. Uma forma legítima e implacável de lembrar a nossos governantes que o pior dos genocídios é o social – fruto, principalmente, dos atos de corrupção praticados em todas as esferas e níveis da administração pública -, que somente por meio de instituições permanentemente atuantes, vigilantes e eficazes é possível viabilizar o florescimento e o crescimento moral e que a ausência de seriedade e honradez por detrás de toda atuação estatal condena qualquer tipo de governo à ruína. Perguntar-se “o que fazer com nossa indignação” é, em boa medida e especialmente, considerar a possibilidade de dizer não a um tipo de conduta política e administrativa deplorável, de dissimulação e de intolerante intransigência que parece só saber bazofiar do problema da moralidade e da independência dos poderes. É, depois de tudo, adotar a célebre exclamação de Lutero: “não posso mais, aqui me detenho!”.
De fato, com uma “greve virtuosa”, a mensagem que se deve enviar àqueles que estão governando é a de que não é insignificante ou “sem sentido” o que está sucedendo: que a indiferença e a falta de uma adequada, constante e comprometida éticamente atuação estatal não é ( e não deve ser) a regra. Que a simples suspeita de que algo vai realmente mal já constitui razão suficiente para atuar e castigar sem piedade os verdadeiros responsáveis por uma situação que já começa a acariciar os limites da degradação moral e política.
Em resumo, minha sugestão é que as estratégias e os meios a serem adotados concentrem-se em uma incansável, eficiente e permanente “greve virtuosa”. Por que? Pela simples razão de que da mesma forma que não se pode curar um câncer agressivo com esporádicas sessões de quimioterapia, não parece possível conseguir alguma das legítimas reivindicações com episódicas medidas de indignação e resistência: “operação-padrão até…, um dia de paralisação, etc”. Ademais, trata-se apenas de uma questão de não esquecer uma “lei de ferro” que rege a experiência humana: se procurar o que está errado, encontro muita coisa. Não há que esperar a intervenção do Espírito Santo para acabar com a praga da corrupção; qualquer tipo de corrupção só se converterá em delito quando venha um juiz e diga: “Isto é um delito, há que castigar o autor”.
E se, depois de tudo, o resultado dessa “greve virtuosa” não for suficiente para atender as justas reivindicações da Magistratura e do Ministério Público, pelo menos servirá para uma finalidade em concreto: quando o atual governo iniciar a construção das infra-estruturas para a Copa do Mundo de 2014 e as Olimpíadas de 2016, poderá fazê-lo com vistas a, uma vez concluído os respectivos eventos, converter essas obras em cárceres para os que não conseguiram o que Platão considerava como o mais difícil do mundo: experimentar e abandonar a vida pública com as mãos limpas. Um verdadeiro “xeque-mate” à escória de corruptos que a sociedade seguramente estará francamente agradecida.
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