Sumúla vinculante: retrocesso democrático

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1. Problemas da Súmula Vinculante
Um das conseqüências da Lei 9.882/99 é que há possibilidade da decisão na referida ação ser proferida com efeito vinculante para os demais órgãos do judiciário, o que inaugurou tendência posteriormente consolidada na Emenda Constitucional n. 45 pela inserção da Súmula Vinculante na ordem jurídica pátria, pondo em risco a higidez do sistema de controle de constitucionalidade abstrato.
O fato é que há inconstitucionalidade por violação aos princípios da inafastabilidade do controle jurisdicional, do juiz natural e do princípio da separação de poderes.
Há violação ao princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional porque embora o particular possa dirigir ao judiciário pretensão de reparação de ofensa a direito seu, na prática isto não ocorre, porque o juiz difuso fica limitado em diversas matérias ao que restar decidido pelo Supremo Tribunal Federal.
A possibilidade de adoção da tese suscitada pelo particular é nenhuma, já que há o efeito vinculante da decisão do STF, restando abolida por via indireta o próprio direito de ação. O princípio do juiz natural foi violado, eis que atenta contra a competência do Poder Judiciário quanto ao exercício do controle difuso de constitucionalidade das leis e atos normativos.
A independência da magistratura foi também violada com a previsão do efeito vinculante da decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal. Todos os magistrados estarão compelidos, em face do supracitado efeito, a agir de modo impróprio ao ofício judicante, ou seja, com a realização de um julgamento livre e, portanto, norteado pela prova dos autos e convencimento formado, estando doravante nas matérias sumuladas obrigados a adotar solução idêntica a lides com causas de pedir eventualmente diferentes.
A estrutura vinculativa acima citada é incompatível com a previsão constitucional que confere aos juízes o poder de declarar difusamente a inconstitucionalidade de um ato normativo1.
A adoção da Súmula Vinculante no âmbito do judiciário brasileiro comporta a idéia de centralizar o processo decisório judicial nos tribunais superiores, que unificam a atividade judicial das instâncias inferiores.
Aduzem os defensores da sumulação vinculatória que sua instauração aceleraria o processo judicial nacional, suprimindo a delonga recursal que as partes tem que se submeter ao discutirem seu direito; perante a decisão prévia imperativa daquelas cortes superiores a longa marcha processualística seria simplificada, e a prestação jurisdicional dar-se-ia com brevidade.
Ora, historicamente nosso sistema jurídico é continuador da tradição romano-germânica, na qual o julgador monocrático, aquele que toma contato imediato com a lide, é quem tem amplos poderes decisivos iniciais sobre aquela, porquanto conhece ab origine suas particularidades.
Assim, a decisão monocrática foi sempre um indicador para os julgadores posteriores. A súmula vinculante faz a supressão dessa livre e imediata apreciação do caso concreto; ao generalizar abstratamente o processo decisório desprezaria as peculiaridades da demanda judicial.
O princípio jurídico processual que está prejudicado é o do duplo grau de jurisdição, abroquelado nos diversos diplomas legais brasileiros, constituindo-se em garantia contra a arbitrariedade de poder judicial que numa única decisão poderia eventualmente errar; efetivando-se a súmula vinculatória, o recurso para as outras instâncias judicativas será invariavelmente suprimido. Como dizem Dinamarco, Araújo Cintra e Grinover2: “O juiz, qualquer que seja o grau de jurisdição exercido, tem independência jurídica, pelo que não está adstrito, entre nós, às decisões dos tribunais de segundo grau, julgando apenas em obediência ao direito e à sua consciência jurídica.”
Resta lembrar que já existem dispositivos normacionais que direcionam o juiz a dar celeridade ao processo, tal como o art. 125, II, do CPC, e o art. 35, II, da Lei Complementar n° 35/79(Lei Orgânica da Magistratura Nacional). Mencionem-se ainda as variegadas inovações legislativas que instrumentalizam a rápida solução dos litígios- Lei 9.099/95(Lei dos Juizados Especiais),Lei 8.397/92(Medida Cautelar Fiscal), Lei 8.952/94(Tutela Antecipada), Lei 8.432/92(Medida Cautelar contra atos do Poder Público). São provisões de instrumentos processais não quais se discute a lide, e não se suprime o contraditório processualizado como referência democrática, o que a Súmula Vinculante faz.
 
2. Conclusão: Não processualidade judicial como redutibilidade do princípio democrático
Se a idéia de uma jurisdição constitucional passa pelo abrangente e renovado compromisso com a gradual conquista democrática pela participação do cidadão na construção dos direitos, implicitamente o que se depreende da Súmula Vinculante é que não há em sua processualização uma democraticidade e difusão das possibilidades de controle da lei pelo cidadão e pelo juiz em sua apreciação da demanda.
Na verdade, com a Súmula, o devido processo constitucional democrático3 encontra-se ameaçado e, de maneira mais grave, a processualização das demandas está comprometida pela mecanização padronizadora do processo decisório, que assim, renova o autoritarismo subjacente em nosso imaginário coletivo cultural, afetando o caráter plural, público e procedimental democrático da interpretação legal e constitucional pelo cidadão4.
 
Newton de Oliveira Lima (*)
 
3. Referências
(*) Mestre em Direito pela UFRN. Professor Assistente da Ufpb. Autor da obra "Jurisdição Constitucional e Construção de Direitos Fundamentais no Brasil e nos Estados Unidos" (mpeditora.com.br).
1 Crítica de OMMATI, José Emílio Medauar. Paradigmas constitucionais e a inconstitucionalidade das leis. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2003, p. 64.
2 DINAMARCO, Cândido Rangel et al. Teoria Geral do Processo. 13 ed. São Paulo: Malheiros, p.74.
3 LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria Processual da Decisão Jurídica. São Paulo: Landy, 2002, p.157.
4 HÄBERLE, Peter. A Sociedade Aberta dos Intérpretes da Constituição: contribuição para a interpretação pluralista e “procedimental” da constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 1997, p.18.

Newton de Oliveira Lima

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